sexta-feira, 30 de setembro de 2011

FILME - 8MM

- Se você dança com o demônio, o demônio não muda. O demônio muda você.

Quatro anos antes desse filme ser realizado, o roteirista Andrew Kevin Walker já tinha surpreendido as platéias do mundo inteiro com o intenso Seven, dirigido por David Fincher. Lá, eram dois policiais comuns que se deparavam com um psicopata culpado de terríveis assassinatos. Aqui, a história não é muito diferente, temos um detetive, pai de família, que se vê mergulhado em um obscuro mundo de masoquismo e sangue para resolver o caso pelo qual foi contratado.
O detetive em questão é Tom Welles (Nicolas Cage). Também é um homem comum mas mais acostumado com crimes de adultério e especializado em clientes de alto poder aquisitivo e que preza muito pela discrição. Por esse motivo, é contratado pela viúva de um milionário que encontra, no cofre do falecido, um vídeo de uma mulher sendo morta. Tudo que ela quer saber é se aquele vídeo é real ou não, e principalmente se a menina do vídeo está viva ou morta. Nada que pareça muito complicado a uma primeira vista.
Descobrir a menina em questão não é tão complicado assim. Checando os arquivos da polícia, ele descobre o nome e onde ela morava, mas seu paradeiro é desconhecido. A verdadeira complicação é descobrir se ela está viva ou morta, e para isso ele terá que ir fundo na investigação descendo até o submundo dos chamados filmes snuff (como são chamados esse tipo de filmes). Welles acredita que esse tipo de filme não existe, que é uma mera lenda urbana, mas lenda ou não ele descobre que há um mundo podre por trás dessa indústria.
Ajudado por um balconista de uma loja de filmes pornográficos chamado Max California (Joaquim Phoenix), ele começa a mergulhar cada vez mais nesse submundo, chegando até o produtor de filmes eróticos Eddie Poole (James Gandolfini), um daqueles caras que podem te apresentar a qualquer pessoa, e é através dele que Welles chega até o estranhíssimo diretor Dino Velvet (Peter Stormare) que está sempre acompanhado de Machine, uma espécie de homem fetiche que usa vinil por todo o corpo e não que não gosta de remover sua máscara.
É de se esperar que Welles se envolva em algum tipo de perigo com esses caras, e ele realmente chega a esse ponto, mas o assunto não é tratado de maneira banal, como mera desculpa para cenas de ação e tiroteios. O roteiro nos leva até dilemas morais que alguns podem concordar ou não. A idéia é colocar um homem comum em meio a uma situação extraordinária. Até que ponto este homem pode chegar a matar uma pessoa ou não? Mesmo que a pessoa mereça. Esses homens não são vítimas de violência doméstica ou coisa parecida, eles simplesmente são pessoas ruins. Será que isso faz com que a morte seja justificada?
Assim como Seven, não é um filme de fácil digestão. Aqui os atos tem suas consequências e os personagens tem que viver com elas. Isso o faz um filme muito interessante.

LIVRO BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio

BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Porto Alegre: L&PM, 2003.

A cultura popular em geral, desde filmes de faroeste a desenhos animados, sempre exaltou a ousadia do homem branco em solo americano, arriscando sua preciosa vida em nome do progresso, da civilização e do bem-estar do “povo americano.” Para tal, envolvia-se em perigosíssimas batalhas contra os índios; criaturas odiadas pelo branco, selvagens sanguinários, praticantes do brutal escalpo que, armados de arcos, flechas, lanças, pedras e rifles velhos, impediam a expansão americana.
Pois eis que em 1970, Dee Brown lança o livro Enterrem Meu Coração na Curva do Rio. Nascido em Louisiana, seu primeiro amigo fora um menino índio, que o acompanhava em todos os filmes que retratavam a luta do branco herói contra o índio maléfico. Ao término dos filmes, o garoto índio sempre aplaudia a vitória do branco sobre o índio. Dee Brown não entendia, até que questionou seu amigo sobre tal fato e este respondera “Não são índios de verdade.” Foi aí que Brown percebeu que de fato, os índios retratados em filmes, livros e desenhos não passavam de caricaturas estereotipadas dos verdadeiros indígenas; homens pacíficos que lutavam para manter o seu direito a vida, o direito de viver nas terras que sempre foram suas e de seus antepassados, a preservação da caça e a preservação da natureza, indispensável para a vida.
Formando-se na Universidade de Washington durante a grande Depressão, conseguiu um emprego de bibliotecário do Departamento de Agricultura. Foi nessa época que começou a mostrar suas habilidades como pesquisador. Para a criação de Enterrem meu coração na curva do rio, Brown utilizou-se de registros oficiais de conselhos e tratados, entrevistas concedidas por índios encontradas em obscuros jornais da época, entre outras fontes que dificilmente veriam a luz do dia se não fosse o interesse de um competente pesquisador.
O período que o livro analisa – e que é o período de onde os maiores mitos do velho oeste surgiram – é o que compreende os 30 anos entre 1860 a 1890. Enquanto a historiografia americana guardava em sua memória massacres como o de Little Big Horn, aonde morreu o General Custer, eternizado como um bravo comandante e mostrado neste livro como um sanguinário perseguidor de índios, se esquece de massacres dezenas de vezes mais brutais, tal qual o massacre de Sand Creek.
O número de leis criadas para benefício dos índios que foram sumariamente ignoradas com o tempo, o número de tratados quebrados e a quantidade de massacres é difícil de se enumerar. Vou usar apenas o exemplo citado no parágrafo anterior, sobre o massacre de Sand Creek.
Os índios Cheyennes estavam acampados em Sand Creek, por terem recebido a garantia de paz do major Anthony, comandante do Fort Lyon. Este os manteve próximos (o acampamento ficava a 65Km de distância do forte) até que recebesse reforços. Além destes, juntaram-se a ele os homens do coronel Chivington, ex-pastor metodista. Alguns homens de Anthony, como o tenente Joseph Cramer e o capitão Silas Soule, foram terminantemente contra o ataque. Conta-se que Chivington esmurrou Cramer e disse: “Vim para matar índios e acho que é certo e honroso usar qualquer meio sob o céu do Senhor para matar índios.”
O massacre é detalhadamente descrito, segundo relatos dos sobreviventes, de ambas as partes da batalha. Adiante, um longo trecho do livro que descreve os requintes de crueldade com que os soldados agiam, retirados do testemunho de Robert Bent, um dos homens que estava cavalgando contra sua vontade por ordem de Chivington:
“Vi uma squaw (mulher indígena) no banco, com a perna quebrada por um obus; um soldado foi até ela com o sabre desembainhado; ela levantou um braço para se proteger, quando ele golpeou, quebrando-lhe o braço; ela rolou e levantou o outro braço, que ele golpeou e quebrou; depois, deixou-a, sem matá-la. Parecia haver uma matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças. Havia cerca de trinta ou quarenta squaws reunidas numa caverna como abrigo. Enviaram uma menina de cerca de seis anos com uma bandeira branca num pau; mal dera uns passos, ela foi atingida e morta. Todas as squaws da caverna foram mortas mais tarde, além de quatro ou cinco homens fora dela. As squaws não ofereceram resistência. Todo mundo que vi morto estava escalpado. Vi uma squaw com seu filho ainda não nascido, segundo me pareceu, ao seu lado. O capitão Soule me disse depois que havia sido isso mesmo. Vi o corpo de Antílope Branco com os genitais cortados e ouvi um soldado dizer que iria fazer uma bolsa de fumo com eles. Vi uma squaw com os genitais cortados... Vi uma menina de uns cinco anos que se escondera na areia; dois soldados descobriram-na, tiraram seus revólveres e a mataram, arrastando-a depois pelo braço sobre a areia. Vi várias crianças de colo mortas com suas mães.”
Este é apenas um dos trechos do livro que descreve a crueldade com a qual o soldado branco agia. Neste episódio em particular, um dos principais líderes do acampamento, Chaleira Preta, saíra com uma bandeira dos Estados Unidos e fora em direção a um dos dois grupos de soldados. A ele foi prometido que, empunhando a bandeira norte-americana, nenhum soldado atiraria nele. Chaleira Preta e os demais índios ao seu redor foram alvejados pelos rifles dos homens de Chivington e Anthony. Devo citar, aproveitando a ponte, que o ato do escalpo que durante tantas décadas foi creditado ao "índio senvagem" na realidade foi introduzido na américa pelos espanhóis e só passou a ser utilizado pelos índios norte-americanos porque os casacos-azuis assim o fizeram primeiro, tal como está descrito no relato postado acima. Infelizmente, não era conveniente que os "bravos soldados" fossem retratados como realmente eram. Era mais simples enumerar relatos de barbáries indígenas para legitimar a matança dos "inimigos do progresso e do homem branco".
Gradativamente, dezenas de outros povos foram exterminados ou reduzidos a poucos representantes. Desta época sangrenta surgiram nomes que, mesmo estando do lado até então considerado vil, sobreviveram na mentalidade americana. Nomes como Nuvem Vermelha, Cochise e Touro-Sentado fazem parte desse grupo.
Este livro, mais do que um triste relato sobre todos os infortúnios que os índios norte-americanos tiveram que enfrentar, foi fundamental para toda uma revisão histórica e uma mudança de mentalidades. Pode-se dizer que esta obra mexeu com a consciência dos norte-americanos, e foi a partir dele que surgiram diversos filmes mostrando o lado dos vencidos.
Levando em conta que ele trata exclusivamente da história dos Estados Unidos, muitos talvez não se interessem pelo mesmo. Sua leitura pode ser um tanto cansativa para quem não possui interesse no tema. Mas mesmo assim me vejo no dever de recomendar este livro para qualquer historiador. Mais do que um simples estudo de três décadas de injustiças, ele é uma mostra da brutalidade humana, do que o homem é capaz de fazer para atingir seus objetivos. Seria de uma ingenuidade tamanha acreditar que estes foram episódios isolados e que tais mostras de barbárie não se repetem nas inúmeras guerras e guerrilhas que ainda hoje nos batem à porta mediante jornais e noticiários em geral. Mais do que conhecer acontecimentos do passado de um outro país, ler este livro é conhecer a mentalidade daqueles que sempre justificaram suas ações com seus discursos demagogos de caráter civilizatório.
Pode soar falso, mas dizer que se trata de um livro emocionante, que realmente faz você pensar sobre a mentalidade humana e lhe ensina a olhar com desconfiança a dita “história oficial”, não é exagero.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

LIVRO LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média

LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

Usura. Esta é a palavra que será repetida uma infinidade de vezes durante o decorrer desta obra sendo o tema central deste livro de Jacques Le Goff. Confesso que soa um tanto hipócrita que se fale sobre a facilidade de se procurar material de Le Goff, Foucault e outros por serem conhecidos e agora estar postando dois livros deste autor em sequência. No entanto, são livros baratos, relativamente fáceis de se encontrar e possuem um conteúdo muito rico para a compreensão da cultura medieval e sua sociedade como um todo, novamente salientando a impossibilidade de o fazer sem envolver a religião, mais precisamente o cristianismo – sob a forma da Igreja Católica Apostólica Romana.
Para iniciar a resenha, creio que seja necessário primeiro elucidar o significado da palavra usura, que caiu em desuso com o passar do tempo. Usura é o ato de se emprestar dinheiro e obter lucro em cima dos juros decorrentes do tempo. Em outras palavras, empréstimo, geralmente sob altos juros.
A principal problemática do livro gira em torno da condenação ferrenha do cristianismo à pratica da usura. Segundo os católicos, o usurário era a pior espécie de ser humano. Enquanto ladrões roubavam bens e objetos, o usurário roubava Deus. Ora, se o usurário empresta o dinheiro e recebe o lucro em cima do tempo, sendo Deus o único dono e senhor do tempo, logo o usurário está roubando a Deus. O problema é que essa condenação exagerada do usurário começou a se tornar inconveniente quando aos poucos o sistema capitalista começou a dar mostras de nascimento. Então, convenientemente, criou-se a idéia de que um usurário, caso devolvesse o lucro ilícito proveniente da usura antes da morte, poderia encontrar a salvação – esta provavelmente pelo purgatório. Como em um determinado trecho é explicitado: “O purgatório, decididamente, não é mais do que uma oportunidade que o cristianismo dá ao usurário no século XIII, mas só o purgatório lhe assegura o paraíso sem restrição.”
O livro ilustra através de pequenas parábolas da época o medo que o usurário tinha da morte e todos os infortúnios que a prática da usura o traria, em vida ou após a morte. Mostra também o quanto essa aversão contribuiu para agravar a imagem negativa que o ocidente medieval cristão possuía dos judeus.
Porém, como já dito anteriormente, os usurários foram peças fundamentais para a formação do capitalismo como o conhecemos atualmente. Os usurários do passado – pelo menos boa parte deles – se tornaram comerciantes, e assim esses sistema econômico teve seu surgimento.
Considero o trabalho anteriormente resenhado (O Deus da Idade Média) mais interessante, mas devo dizer que isso se deve ao fato de eu ser mais interessado nos aspectos religiosos do que político-econômicos das civilizações. Este livro torna-se de grande valia para qualquer um que queira entender como a religião teve que adaptar-se às mudanças da sociedade, mesmo aquelas que feriam suas doutrinas mais antigas.

LIVRO LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

Enquanto o mundo se afoga em profecias apocalípticas de fim dos dias, Igrejas das mais diversas surgem prometendo a salvação, esta sendo rejeitada gradativamente por um mundo que torna-se apático ao que no passado era a razão de todo um comportamento regrado. Se hoje podemos nos imaginar livres de religiões e dogmas, o ocidente medieval não podia. É impossível dissociar Deus, Igreja Católica e a Idade Média, dado o grau de importância que esta Igreja possuía e sua influência sobre toda uma civilização, com diversos resquícios que duram até hoje.
Este cenário, que podemos chamar de exótico caso queiramos nos utilizar de eufemismo, é ideal para inspirar uma boa obra. E esta resenha fala de uma. Mais precisamente O Deus da Idade Média, do medievalista francês Jacques Le Goff.
Sendo um dos maiores medievalistas do mundo, Le Goff dedicou a maior parte de suas obras a essa época tão cheia de nuances. Neste livro, o autor foca na presença de Deus neste período, desenvolvendo a obra através de conversas – como já explicita o sub-título – com o historiador e redator-chefe da revista Le Monde de La Bible, Jean-Luc Pouthier.
O livro aborda diversas questões. É discutida, por exemplo, a visão que a população medieval possuía de Deus, como o imaginavam e sua relação com o mesmo. Logo no primeiro capítulo, com poucas palavras, Le Goff explicita o início do Cristianismo e esboça sua expansão:

“A Antiguidade tardia é o período em que o Deus dos cristãos se torna o Deus único do Império Romano. Esse Deus é um Deus oriental que consegue se impor no Ocidente. Os primeiros grupos de cristãos se desenvolveram um pouco à maneira de uma seita, que faz conquistas e cujo número de membros cresce.”


Ainda no mesmo capítulo, é importante frisarmos a influência de práticas pagãs no culto cristão. Essas práticas continuaram sendo praticadas na surdina pelos camponeses. Ora, à partir do momento que 90% da população se concentrava nos campos, temos aí uma grande deturpação deste culto cristão que prega a idéia de que toda crença fora do cristianismo é de origem demoníaca.
No segundo capítulo, Le Goff aborda a presença de duas figuras que alcançaram grande status na época e que até hoje mantém-se com força: o Espírito Santo e a Virgem Maria. O capítulo tenta mostrar a flexibilidade do monoteísmo cristão medieval quanto à presença de outras figuras que não Deus. Ilustra a dificuldade não apenas do povo entender a presença deste Espírito Santo e da unidade da Santíssima Trindade quanto a dos clérigos da época ao tentarem criar uma concepção compreensível desta.
No terceiro capítulo, é discutida a presença de Deus na Idade Média, principalmente sua representação. Afinal de contas, os cristãos representam Deus através da arte, diferentemente de judeus e muçulmanos que cultuam um Deus não visualizado. Não apenas isso, os cristãos o representam sob um aspecto monárquico, praticamente imperial; tal qual um rei em seu trono, com poderes absolutos.
No quarto capítulo, o livro foca no papel da Igreja na cultura medieval. É um tanto complicado apontar o foco da discussão, já que esse é um assunto suficientemente longo; contudo, é algo que jamais pode ser ignorado, já que essa influência marcou para sempre a cultura e a formação da ética ocidental. Por mais que não se perceba, seus elementos estão presentes em nosso cotidiano, mesmo depois de tantos séculos.
Um livro pequeno, poucas páginas, letras grandes, que pode ser lido rapidamente. Porém, possui um conteúdo tão rico que é impossível menosprezá-lo. Ele segue o caminho inverso de livros gigantescos que se perdem em floreios e fogem do foco. Objetivo, é uma leitura obrigatória para qualquer historiador que deseje compreender a inserção da Igreja na sociedade medieval.



FILME WALLACE, Randall FOMOS HERÓIS

A introdução e o final de Fomos Heróis são um resumo do que há, respectivamente, de melhor e de pior no filme. No início, a surpresa: ao introduzir um filme sobre o Vietnã uma das primeiras frases que se ouve é uma dedicatória não apenas aos soldados americanos mortos na guerra, mas também "aos bravos vietnamitas do Norte que nós matamos". Mais surpreendente ainda (uma vez que há uma certa onda revisionista "politicamente correta" incentivando este tipo de "pedido de desculpas") é que as primeiras cenas do filme, sem uma função dramatúrgica direta para tal, mostram o ataque dos vietnamitas a tropas colonizadoras francesas. Parece estranho num filme típico do cinemão americano este tipo de correlação que mesmo Francis Ford Coppola acabou retirando da sua primeira versão de Apocalypse now. É francamente surpreendente, sem dúvida.
E é nesta linha que o melhor de Fomos Heróis vai transitar: tentando fazer um esforço de reflexão do tipo "antes de americanos ou vietnamitas os soldados são sempre jovens que não escolheram estar ali lutando", o filme consegue propor vários momentos de observação humanista interessante, quase pelo viés reflexivo de um Atrás da Linha Vermelha. Também bebendo do tipo de encenação hiperrealista pós-Platoon (mas, especialmente, pós-Resgate do Soldado Ryan, e porque não dizer, pós-Coração Valente, filme do qual o diretor Wallace foi roteirista), o filme consegue encenar algumas cenas de batalha absolutamente impressionantes, onde atinge o espectador em cheio no intuito de fazer do ato de guerrear algo profundamente repugnante e desesperador (lembrando muito o realismo de um Kippur, de Amos Gitai). O espetáculo do cinema está a serviço de mostrar o quanto de medo e perda de consciência há por trás do chamado "heroísmo patriótico".
No entanto, o que falta ao filme (e o final é o maior índice disso) é a coragem (ou, pragmaticamente falando, a impossibilidade prática como produto hollywoodiano) de levar isso tudo que está intuído e sentido aqui e ali até as últimas consequências. Sim, porque apesar de toda esta contextualização, esta tentativa de dar espaço cênico aos "dois lados", esta condenação da guerra, ainda assim existe no filme a presença do "Grande Herói Americano", do homem-comum-que-se-converte-em-herói, do exemplo máximo de ideal de coragem acima do medo. Este mesmo clássico modelo que era tão opressor no cinema dos anos 40 (quando podia ser John Wayne ou Gary Cooper) quanto nos anos 80 (Stallone ou Chuck Norris), tudo isso está aqui no personagem de Mel Gibson, que com sua bondade, coragem e correção inabaláveis, destoa de todo o resto que está encenado. Perfeito como pai de família, como tutor, como amigo, como superior, como soldado, como adversário, como mente estratégica, ele é um verdadeiro modelo de ser humano que torna, pela comparação, os outros que o cercam um bando de fracos e insuficientes.
É verdade que não chega a ser um personagem tão deslocado assim já que a trilha sonora, as câmeras lentas e os closes heroicizantes já indicam todo um outro viés do filme. Ainda assim, no final, após tamanho desfile de sofrimento e desespero era de se esperar menos fé do próprio cineasta na figura do seu herói. Esta, no entanto, se mostra inabalável. É como se o filme nos dissesse: "a guerra é errada, um absurdo dos homens, e é perfeitamente normal sentir medo e desespero nela, que anula a humanidade de cada um, MAS se for para se ver nessa situação, nada melhor que com um autêntico coronel-herói do bravo Exército Americano". É através dele que se busca um final do tipo "a guerra acabou com muita gente, mas pelo menos famílias como a deste homem podem ter orgulho do herói que têm em casa". Da mesma forma que soa absolutamente desnecessária a caracterização tão batida da imprensa como um bando de abutres tentando viver da carniça do sacrifício dos soldados-heróis.
Estas patriotadas e simplificações certamente tiram boa parte da força e até da seriedade da tentativa de denúncia altamente pungente que o filme levanta (e especialmente forte pela forma com que muitas vezes é filmada). Mas, se fica difícil levá-lo de todo a sério, também não é motivo para que não se reconheça seus méritos, e não se aproveite algumas belas idéias, como o retrato das mulheres que ficaram em casa no ritual do recebimento de telegramas notificando as mortes dos seus maridos. Apesar do caimento melodramático mão-pesada em algumas cenas, é este tipo de idéia que permite ao filme de Wallace atingir um mínimo de permanência.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

LIVRO GREENE, Brian.O Universo Elegante


A física moderna apóia-se em dois pilares: a Teoria da relatividade geral, que explica o universo em grande escala (planetas, estrelas, galáxias), e a Mecânica quântica, que descreve-o em escala microscópica (partículas, átomos, moléculas). A primeira deve-se a Albert Einstein que no início do século XX subverteu a visão científica do universo ao estender a teoria gravitacional, originalmente proposta em 1687 por Isaac Newton, com o conceito de relatividade do tempo. A segunda teve origem na teoria eletromagnética, proposta em 1865 por James Clerk Maxwell e, tal qual a teoria de Einstein, representou uma verdadeira revolução conceitual, desta vez ao introduzir a probabilidade como única descrição possível do mundo sub-atômico. As primeiras idéias surgiram em 1900, propostas por Max Planck, e nos anos seguintes foram aperfeiçoadas por físicos como Einstein (sempre ele), Werner Heisenberg, Paul Dirac e Erwin Schrödinger. Ambas as teorias são capazes de prever fenômenos físicos, dentro de seu respectivo campo de atuação, com uma precisão inimaginável, no entanto esta história de sucesso esconde um fato perturbador: a relatividade geral e a mecânica quântica não podem estar certas ao mesmo tempo. Isto significa que a física moderna não é capaz de prever o que acontece em situações onde uma grande quantidade de matéria está confinada em um espaço muito pequeno, como no interior de buracos negros ou logo após o Big bang, a explosão que deu origem ao universo.
A boa notícia que nos traz o livro O Universo Elegante: supercordas, dimensões ocultas e a busca da teoria definitiva de Brian Greene (Companhia das Letras, 2001) é que está em gestação a Teoria das supercordas, ou simplesmente Teoria das cordas, uma teoria capaz de unificar a descrição física do universo, realizando o sonho perseguido em vão por Einstein em seus últimos trinta anos de vida: a construção de uma Teoria sobre tudo. A má notícia é que de acordo com a teoria das cordas o tecido microscópico do universo é um labirinto com mais de dez dimensões, a maioria das quais dobrada sobre si mesma dentro de volumes minúsculos, cuja descrição matemática é tão complicada que até hoje só se conhecem equações aproximadas da teoria. Mas estas dificuldades não assustaram Greene quando escolheu esta área da física como campo de atuação, área na qual colaborou com diversas descobertas. Também não o intimidou o enorme desafio de apresentar, de maneira compreensível para leigos, tal complexidade. Ao leitor pede-se que não esmoreça e encare a leitura com a mesma coragem, a recompensa vale a pena: chegar mais perto de compreender como funciona o universo.
Em resumo, a teoria de cordas afirma que todas as maravilhas que ocorrem no universo surgem das vibrações de uma simples entidade: minúsculos laços ou cordas profundamente escondidos no coração da matéria. Os diferentes padrões de vibração destes laços seriam a origem da diversidade do mundo sub-atômico. A ambição final da teoria é explicar os valores das diversas constantes que aparecem nos modelos físicos (a velocidade da luz, a massa e carga das partículas elementares, a relação entre as intensidades das diferentes forças, etc.), que atualmente devem ser determinados experimentalmente, como decorrência da teoria. Além de relatar a história científica por trás da busca desta teoria final, Brian Greene descreve também o lado humano, a emoção de participar da construção do que será a verdade futura a respeito da essência do universo, as disputas e a colaboração, a decepção com o fracasso e a emoção com cada nova descoberta. Como pano de fundo, idéias revolucionárias e excitantes tais como novas dimensões escondidas no tecido do espaço, buracos negros que se transformam em partículas elementares, cortes e furos no contínuo do espaço-tempo, universos gigantes que se trocam com outros minúsculos, e toda uma variedade de outros aspectos que desempenham um papel essencial na compreensão de algumas das questões mais profundas de todos os tempos.
Se a complexidade do assunto parece desanimadora, isso deve-se ao desconhecimento do verdadeiro talento do autor para a metáfora e para as imagens mentais. Sem perder de vista o rigor técnico, Greene esgrima descrições e figuras que, se não são suficientes para tornar evidente o que são espaços de seis dimensões de Calabi-Yau, nos levam muito próximo da idéia geral do que poderá vir a ser a teoria final sobre tudo. Um exemplo: para explicar o que seria uma dimensão recurvada sobre si mesma, Greene nos convida a imaginar uma mangueira, que vista de longe é uma simples linha reta, unidimensional, mas para uma formiga que caminha sobre sobre sua superfície é um espaço bidimensional encurvado. Basta agora encolher a mangueira alguns milhões de vezes e teremos a trama íntima do tecido do espaço tempo.
O livro é dividido em cinco partes e quinze capítulos. A primeira parte corresponde à introdução (capítulo 1, vibrando com as cordas) e a quinta à conclusão (capítulo 15, perspectivas). As três partes centrais tratam, respectivamente, das teorias "clássicas" -- a relatividade geral e a mecânica quântica --, da teoria das supercordas e, finalmente, das implicações desta teoria no que diz respeito à estrutura do espaço-tempo. Apenas a leitura da segunda parte (o dilema do espaço, do tempo e dos quanta, capítulos 2, 3, 4 e 5), um curso resumido mas completo sobre os fundamentos da física moderna, já vale o investimento. O livro inclui ainda notas, glossário de termos científicos, referências e sugestões de leitura, e índice remissivo.
Brian Greene licenciou-se em Harvard e doutorou-se em Oxford. Foi professor na Universidade de Cornell, tendo sido nomeado professor catedrático em 1995, e em 1996 transferiu-se para a Universidade de Columbia onde é atualmente professor de física e de matemática. É considerado um dos grandes cientistas no campo da teoria das cordas, tendo realizado um grande número de descobertas revolucionárias neste domínio.

LIVRO SINGH,Simon. O livro dos códigos

A necessidade de privacidade parece ser inerente à natureza humana, no entanto nos círculos diplomáticos e militares, principalmente em tempo de guerra, ela é fundamental. Foi nestes círculos que desenvolveu-se a arte da escrita secreta e a eles restringiu-se até o início da era das comunicações globais, quando, principalmente, devido aos telefones celulares e a Internet, a ameaça da invasão de privacidade estendeu-se às pessoas comuns. A história da evolução desta arte, desde a antiguidade até a incorporação de técnicas da física de partículas, é contada por Simon Singh em O livro dos códigos, A ciência do sigilo do antigo Egito à criptografia quântica, Editora Record, tradução Jorge Calife, 2001.
Embora repleto de histórias deliciosas, este não é um livro para quem não aprecia, um pouco que seja, a matemática ou ao menos o pensamento formal. No entanto, para quem cultiva este prazer, o livro não decepciona: didático, apresenta com fartura de exemplos, 76 figuras ao todo, os detalhes de cada tipo de código, aprofundando ainda algumas explicações em apêndices. Estes exemplos foram certamente um desafio a mais para o tradutor que, infelizmente, em diversas passagens não esteve à altura: inglês e português misturam-se as vezes em meio aos passos de codificação e decodificação.
Além dos prazeres matemáticos, diversos episódios históricos e histórias folclóricas informam e divertem o leitor. Dentre os primeiros destaca-se a luta da equipe de criptógrafos ingleses que, durante a Segunda Guerra Mundial, decifrou, com o auxílio de máquinas eletrônicas, precursores dos computadores, a máquina de codificação alemã Enigma. A participação do matemático Alan Mathison Turing nesta luta é detalhada em sua biografia Alan Turing: the Enigma, escrita por Andrew Hodges e ainda sem tradução para o português.
Outro episódio histórico interessante foi o uso, também durante a Segunda Guerra Mundial, pelo exército americano, principalmente na guerra do Pacífico, de índios Navajos, cujo idioma, com estrutura e raízes lingüísticas únicas, é um perfeito código secreto, com a vantagem de permitir comunicação quase em tempo real, sem a necessidade de nenhum processo de decodificação escrito, o que é vital no campo de batalha. Um parêntese interessante dentro da história dos códigos, linguagens concebidos para ocultar o conteúdo das mensagens, é dedicado à decifração de escritas antigas, que embora não tivessem como objetivo ocultar seu conteúdo teve seu significado perdido ao longo do tempo. Neste parêntese, personagens como Thomas Young, Jean François Champollion e Alice Kober tem suas vidas e vitórias descritas.
Dentre as histórias folclóricas, o mistério do tesouro de Beale merece menção: um cowboy, Thomas J. Beale, teria acumulado uma fortuna de 20 milhões de dólares, escondido-a e deixado, com Robert Morris, dono do Washington, em Lynchburg, Virgínia, uma caixa com documentos cifrados revelando a localização do tesouro. A chave da cifra teria sido deixada com um amigo, que nunca apareceu. Desde então os documentos permanecem indecifráveis e o tesouro escondido.
Os três últimos capítulos tratam do presente e do futuro e mostram como a comunicação globalizada levou a um impasse na privacidade: se pessoas comuns puderem ter acesso à mais avançada tecnologia de criptografia e ter assim seus e-mails secretos protegidos, então os criminosos e terroristas também terão e poderão planejar suas atividades sem que possam ser descobertos, mesmo com licença judicial para a escuta de suas comunicações. Uma explicação acessível para leigos sobre a criptografia quântica, a escrita secreta do futuro, escerra o livro.
Simon Singh é filho de emigrantes indianos e nasceu em 1964, em Wellington, Inglaterra. Doutorou-se em física pela Universidade de Cambridge e trabalhou dois anos no Centro Europeu para Partículas Físicas (CERN), em Genebra, Suíça, em busca do top quark, um dos tijolos básicos na estrutura da matéria. Em 1991, passou a trabalhar no departamento de ciência da BBC. Participou dos programas World Tomorow e Horizon, onde foi co-produtor de um documentário, ganhador do prêmio BAFTA. Escreveu ainda O Último Teorema de Fermat, já resenhado no Redemoinho, e The Science of Secrecy, também sobre a história da criptografia. Mantém atualmente uma página na Internet onde vende e indica livros e anuncia suas palestras.
O livro tem oito capítulos, as vezes um pouco longos, que correspondem basicamente aos diversos estágios da evolução das técnicas de criptografia. Inclui ainda dez apêndices (de A a J) com explicações mais detalhadas de alguns dos tópicos tratados, um glossário e uma seção de bibliografia recomendada, inclusive com diversos endereços Internet, além de agradecimentos e créditos das muitas fotos que ilustram o livro. Ao ser lançado no Reino Unido em 1999, o livro incluía um desafio com um prêmio de 10.000,00 libras esterlinas, na forma de 10 mensagens cifradas, com complexidade de decifração crescente. Embora não seja mais válido, enquanto desafio oficial, as dez cifras foram incluídas no final do livro como desafio pessoal aos leitores.

domingo, 18 de setembro de 2011

Livro NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O DIABO NO IMAGINÁRIO CRISTÃO

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O DIABO NO IMAGINÁRIO CRISTÃO. São Paulo: Ática, 1986.

O que seria dos bons se não houvessem os maus? Se não existisse o mau, possivelmente o conceito de bondade seria inexistente. Não obstante, o Deus do Antigo Testamento bíblico é o senhor do bem e do mau. Concede dádivas quando há merecimento, mas também pode causar grandes catástrofes para punir, caso necessário. Como exemplo, podemos citar a destruição de Sodoma e Gomorra, além do conhecido grande dilúvio.
Já no Novo Testamento, o que temos? A inserção de um antagonista: o diabo. Se no Antigo Testamento haviam algumas figuras que apenas futuramente foram associadas ao demônio, no Novo Testamento ele é uma peça fundamental. É aquele que desvirtua o homem, que tenta Jesus durante seu jejum, que traz a ruína e quem, no fim dos tempos, se digladiaria contra o Senhor no Juízo Final, sucumbindo enfim.
Esta inserção do mito do demônio é explicada nesta obra, mas o principal foco dela é a paranóia medieval do demoníaco. A presença do diabo 24 horas por dia, sendo responsável por todos os males, todas as falhas de caráter. Em outras palavras, podemos dizer claramente que o mundo era dominado pelo demônio, e alcançar a graça divina era uma dádiva da qual poucos virtuosos poderiam se orgulhar de receber.
De uma criatura sem face para uma aberração, geralmente descrita pelas visões de Santos ou pelos depoimentos de acusados de bruxaria, o demônio passou a ser retratado de forma semelhante ao que conhecemos hoje. Aspecto grotesco, asas de morcego e em várias obras, um rosto no lugar do ânus, que seus adoradores beijavam em cerimônias macabras – reiterando que estes eram depoimentos de supostos envolvidos com bruxaria sob intensa tortura. Não podemos esquecer que as representações de divindades pagãs contribuíram muito para a concepção atual do demônio, desde divindades antropozoomórficas de povos antigos como os babilônios até divindades de povos chamados pelo ocidente medieval de bárbaros.
Para quem se interessa por cristianismo e quer estudar o efeito da religião na mentalidade e na cultura, este livro é um excelente material.

sábado, 17 de setembro de 2011

Livro MENNUCCI, Sud A CRISE BRASILEIRA DA EDUCAÇÃO

MENNUCCI, Sud. A Crise Brasileira de Educação. 2.ed. São Paulo:Piratininga, 1934

O livro de Sud Mennucci principia tratando da crise universal da educação. A ciência transformou as condições da vida ocidental. Todos os valores de tempo e distância passaram a ter outra significação. A escola antiga ficou fora de fase, atrasou-se tanto mais quanto já não encontra o apoio que sempre lhe deram a família de tipo romano e a oficina. O trabalho moderno é outro; outras são as condições da família em que o pátrio poder já não tem a extensão de outrora, em que a mulher vive e trabalha fora do lar. O surto da “escola nova” corresponde a tais circunstâncias. A escola nova quer ser de preferência internato, quer instalar-se em zona de campo, valendo-se do ar puro, do sol e do cenário. Ela faz do treino sensorial o expediente máximo da sua pedagogia e se organiza com a preocupação do estudo psicológico e fisiológico do educando, do seu gênio, das suas aptidões, das suas preferências, dos seus interesses imediatos. Ela procura reunir tudo quanto cabia à família e à oficina, complemento histórico dos antigos centros de educação. Condicionado o sistema educativo de cada época pela organização do trabalho então dominante, tivemos no Brasil, o que o autor chama “saldo negativo” proporcionado pelo trabalho escravo. No segundo capítulo do seu livro o autor demonstra que a mentalidade nacional foi influenciada pelo preconceito do trabalho manual. Veio a república e com ela a obra de reconstrução educativa. Mas foram copiados os modelos clássicos, inspirados no que se via nos países industriais da Europa. O país ansiava por uma legislação educativa essencialmente rural; deram-lhe escolas urbanistas. E quando pensaram em fundar escolas rurais foi pior. Fizeram-se escolas de cidade localizadas no campo. Alberto Torres por isso mesmo escreveu que a nossa instrução pública era um sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo. Em vez de promover o progresso do campo, a escola oficial despovoa as lavouras. Delas o filho do lavrador não sai a definir o que lhe parece deva ser a escola brasileira, sempre de acordo com o ambiente regional. Só com a segmentação dos latifúndios, sustenta ele, será possível o nosso verdadeiro surto educativo. O êxodo dos campos desaparecerá. A posse da terra seria capaz de anular os resíduos psíquicos da velha prevenção contra as trabalhos de amanho da lavoura.
Como retalhar os latifúndios, uma vez que a solução russa, violenta e imprópria, ou a rumáica, baseada no consenso dos possuidores, ou a francesa, baseada na herança — não podem ser propostas? A solução de Sud Mennucci é a campanha pelas oportunidades de repartir a terra. Juntem-se a União, os Estados, os Municípios, às Associações particulares nesse objetivo. “Conheço clubes comerciais, escreve o autor, para inúmeros fins, que entregam aos seus prestamistas as coisas mais disparatadas que eles possam desejar. Nunca ouvi falar de nenhum que sorteasse glebas de terras para o deixam avultadas quantias para aumentar patrimônios de todos casas de caridade grandes lavouras, sob a condição de apurar o espólio mediante a venda a longos prazos desses terrenos a numerosas famílias de caboclos...”
Depois o autor considera o problema do professor. “O professor não gosta do campo, porque o campo é atrasado... mas o campo não progride porque o professor não lhe dá o seu entusiasmo”. Se ele foi feito para a cidade...
O sistema de Sud Mennucci para divulgar o ensino primário no Brasil é, destarte, um todo harmônico, antes social que pedagógico, cheio de originalidade e de clareza. A posse da terra, a conquista do meio às comodidades humanas, a formução do professor são as faces mais salientes do seu edifício. “No terreno da prática, escreve Sud Mennucci, a primeira dádiva a conceder ao meio rural seria destruir-lhe o administrações públicas ou mediante subscrição popular, colocado no ponto central do bairro, dar-lhe-á o informante minucioso e quotidiano das coisas e acontecimentos da terra, ao mesmo tempo o recreio costumeiro dos habitantes —O rádio substitui o jornal com vantagem, — Sud Mennucci é jornalista... — alcança a população analfabeta, chega na mesma hora aos pontos onde os jornais levam dias a chegar; junto com o rádio, a energia elétrica”.
Sud Mennucci no seu livro, indica, pois, de maneira realmente superior, todas as condições sociais em que se define o problema considerado. E indica, com clareza, simplicidade, entusiasmo, de maneira prática, soluções modernas e possíveis

Filme BIGELOW, Kathryn GUERRA AO TERROR

Guerra ao Terror (The Hurt Locker, EUA, 2008).
De: Kathryn Bigelow.
Com: Jeremy Renner, Anthony Mackie, Brian Geraghty, Guy Pearce, Ralph Fiennes, David Morse, Evangeline Lily.


Certas coisas são impossíveis de replicar. Assim como no universo criado por Ridley Scott no lendário Blade Runner, a diferença entre o verdadeiro e o artificial é sutil, quase imperceptível a olhos destreinados. Nas mãos da pessoa certa, é até plausível dizer que o sentimento é o mesmo. Mas, como no final tudo é um espetáculo, a cortina fecha e lá estamos nós. Abalados, impressionados, quem sabe até devastados pelo que acabou de passar por nossos olhos. O mesmíssimo desespero transparecendo no olhar. Mas estamos seguros, confortáveis, teremos tempo para pensar, para se recuperar, e simplesmente seguiremos em frente. É cruel, é quase aflitivo em alguns momentos, mas é a verdade e esconder-se dela é inútil. Se há algo que Guerra ao Terror passa com eficiência ímpar é essa sensação desoladora de saber... mas não poder agir. Afinal, se estamos aqui, deste lado da tela, por mais que quisermos salvar vidas do outro lado do oceano e descobrir o que realmente está acontecendo, não está ao nosso alcance. Não podemos estender a mão, suportar o peso de uma arma ou desarmar uma bomba colocando a própria vida em perigo em nome de pessoas que não conhecemos, e pior, nas quais não confiamos. Guerra ao Terror deixa claro desde o início o que quer provar. Em uma citação que surge na tela sem explicações, uma frase permanece por mais tempo: a guerra é uma droga. E nós, seres humanos, somos potenciais viciados. Todos nós. É difícil explicar a sensação, mas assistir a Guerra ao Terror é como ter uma dose baixa, inofensiva quase, dessa droga. Quando você menos esperar, vai estar hipnotizado, querendo mais. Sobem os créditos, e é quase como se uma viagem tivesse acabado antes do momento certo. Não há um final de verdade em Guerra ao Terror, porque a guerra ainda não acabou, e, provavelmente, nunca irá acabar. Ficar ao lado de soldados tão dedicados e tão diferentes por breves duas horas é como ver crescer um sentimento ambíguo que, por breves momentos, é verdadeiro. Poderoso, até, a ponto de fazer subir aquele arrepio pela espinha e a ponto de fazer a câmera se tornar nossos próprios olhos, observando algo que odiamos, que causa repulsão. Mas, ainda assim, algo que parece natural. Horrivelmente prazeroso. A pergunta que fica: por quê? Não importa. Não para as vidas que se perdem na batalha, pelo menos.

William James (Jeremy Renner) é um sobrevivente e ao mesmo tempo alguém que receberia a morte com um sorriso. Um soldado que viveu mais na guerra do que fora dela e alguém que não esconde o quanto sua vida faz mais sentido com a adrenalina correndo por suas veias. Um homem que não teme a morte porque sabe que a vida depois de sobreviver a ela pode não valer a pena. Um personagem complexo que aos poucos desenvolve uma identificação imprevisível, explosiva e intrincada com o espectador conforme os dias em campo vão passando e a ligação entre ele e seus comandados vai se estreitando. Ele se torna o novo sargento de uma divisão responsável por desarmar bombas no calor da batalha quando Matt Thompson (Guy Pearce) sucumbe a uma das armadilhas terroristas espalhadas pela cidade. É claro, a guerra não pode parar e James assume a liderança do time formado pelo cauteloso JT Sanborn (Anthony Mackie) e pelo jovem Owen Eldridge (Brian Geraghty). O primeiro, uma pilha de nervos a flor da pele e um soldado que não gosta de sair dos planos porque preza demais por sua vida. De certa forma, o antagonista perfeito para o jogo de gato e rato que James impõe no combate urbano tenso em pleno Iraque. O segundo, um jovem perturbado pelo horror da guerra que vê na serenidade nervosa de James um exemplo para se mirar e tenta ser como ele porque quer esquecer quantas vidas pesam no julgamento de sua arma. A balança imprevisível de emoções e temperamentos é gerenciada com precisão cirúrgica e magistral habilidade pelo roteiro de Mark Boal (No Vale das Sombras), uma revelação de puro realismo e um deleite de envolvimento para os apreciadores do bom cinema. De forma mais objetiva, porém, a verdadeira força do roteiro vem do assustador clima de pressão emocional e psicológica ao qual o espectador é submetido a cada nova missão e, no clímax, mesmo nos diálogos mais banais. As situações extremas criadas pelo roteirista conduzem com habilidade ímpar os personagens por um labirinto de maus julgamentos e ventos amargos que levam a um destino ruim. Ou pelo menos assim parece durante todos os 131 minutos de Guerra ao Terror, um filme que destrói de uma vez por todas qualquer esperança de que um dia a paz possa reinar. Porque a guerra é milhares de vezes mais poderosa do que qualquer outra droga.

Apesar do trabalho primordial fantástico de Boal no roteiro, Guerra ao Terror jamais causaria o impacto que pretende se não fosse o trio de protagonistas. Jeremy Renner, mais conhecido por papéis coadjuvantes em filmes como Extermínio 2 e Terra Fria, encara seu primeiro protagonista e faz um trabalho não menos que perfeito ao dar vida ao furacão de violência e contradição que é William James. Na pele do sargento, Renner entrega a interpretação intensa que o personagem exige e ainda vai além, compondo um cru, cruel e desoladoramente realista mensageiro da morte, que chega como uma força sobrenatural e humana a um tempo para balançar o mundo já abalado de soldados que não sabem até que ponto vale a pena lutar pela sobrevivência. Detalhista, visceral ou simplesmente eficiente para o que se propõe, Renner passeia pelo roteiro com a desenvoltura de um gigante em cena. Ao lado dele, Anthony Mackie (Menina de Ouro) é o soldado honrado e a ligação emocional mais forte do espectador com a platéia, compondo uma atuação menos intensa que a de Renner, e ainda assim tão eficiente quanto. É a prova definitiva de que interpretar é mais instinto e menos fórmula, uma explosão de criatividade em tela e uma incorporação perfeita de um personagem que parece mais simples do que verdadeiramente é. Complexidade essa que é entrelaçada de forma quase instintiva com a atuação de Brian Geraghty (Soldado Anônimo), um furacão de incerteza que passa pela tela arrasando tudo a seu caminho e termina a projeção como o elo fraco de uma corrente que se partiu. O resultado: seu Owen Eldridge é o mais real, impressionante e inesquecível elemento de Guerra ao Terror. Se o elenco faz o trabalho pesado ao trazer intensidade e técnica a uma história de puro instinto, Kathryn Bigelow (Caçadores de Emoção) cuida de nos mostrar, com sua câmera trêmula e invasiva, o quanto o cotidiano de uma guerra pode ser perturbador. Intrusiva, carregada de instinto e talento incontestável, a direção da cineasta se adequa tão puramente com a trama que fica difícil imaginar outras imagens traduzindo os mesmos sentimentos. Ela não foge do impacto visual e, jogando nesse campo, constrói algumas das cenas mais impressionantes dos últimos tempos, mostra-se eficiente em provocar tensão e não escorrega nos momentos de adrenalina, chegando ilesa ao final dos 131 minutos de projeção de Guerra ao Terror e criando uma identidade visual única para um filme em que tudo parece convergir para um resultado de brilhantismo e perturbação irrevogáveis. O mais impressionante? Pode estar acontecendo, de verdade, a um oceano de distância.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Livro SHAKESPEARE, William. A COMÉDIA DOS ERROS

Em Éfeso, um comerciante de Siracusa, chamado Egeu, é condenado à morte por ter cruzado a fronteira entre as duas cidades rivais. Próximo da hora da execução, Egeu conta a sua história a Solino, o duque de Éfeso. Vinte cinco anos antes Egeu e a sua família - a sua mulher, os dois filhos gémeos e ainda dois escravos também gémeos - tinham-se separado em consequência de um naufrágio. Um dos filhos e um dos escravos tinham permanecido com Egeu, mas tinham perdido o rasto dos outros e Egeu deslocara-se a Éfeso na esperança de os encontrar. Comovido, o duque substitui a pena de morte por um resgate de mil marcos. Sem que Egeu saiba, também o filho e o escravo (Antífolo de Siracusa e Drômio), que sempre viveram com ele, se encontram na cidade com o mesmo objectivo o que vai provocar uma série de mal-entendidos. Adriana, casada com Antífolo de Éfeso, confunde-o com o irmão de Siracusa e arrasta-o para casa. Pouco depois Antífolo de Éfeso vê-se impedido de entrar na sua própria casa. Entretanto Antífolo de Siracusa apaixona-se pela irmã de Adriana, Luciana, que fica chocada com o comportamento daquele que ela julga ser o seu cunhado. Para complicar ainda mais a situação Antífolo de Éfeso é preso por se recusar a pagar uma corrente de ouro que comprara, mas que nunca chegara a receber por ela ter sido entregue, por engano, ao seu irmão. Estranhando o comportamento do marido, Adriana pensa que ele enlouqueceu e recorre a um exorcista, o professor Pinch. Quanto a Antífolo de Siracusa e ao seu escravo, julgando que a cidade está enfeitiçada tentam fugir mas, ao sentirem-se ameaçados, refugiam-se numa abadia. Quem acaba por resolver toda esta confusão é a abadessa, Emília, que é, nem mais nem menos, que a esposa desaparecida de Egeu. No final tudo acaba bem. Adriana reconcilia-se com o marido, o duque perdoa Egeu que se reúne com a esposa e Antífolo de Siracusa tenta a sua sorte com Luciana.

Filme BREST, Martin. PERFUME DE MULHER

Título Original: Scent of a Woman
Ano: 1992
Direção: Martin Brest
Elenco: Al Pacino (Tenente-Coronel Frank Slade), Chris O'Donnell (Charlie Simms), Gabrielle Anwar (Donna), Phillip Seymour Hoffman (George Willis Jr.)

Entreter, distrair, comover, emocionar... são várias as lacunas que a arte cinematográfica procura preencher. E, desde que o cinema nasceu, poucos filmes conseguiram preencher esse espaço de forma tão sublime e perfeita quanto "Perfume de Mulher" o fez.
Refilmagem (da obra de Dino Risi) produzida em 1992, Perfume de Mulher conta a história da amizade entre o Ten. Cel. Frank Slade (Al Pacino), um militar que ficou cego, e o jovem estudante Charlie Simms (Chris O`Donnel). Precisando de dinheiro para visitar os pais, Charlie é contratado pelo Coronel para ser sua companhia enquanto sua sobrinha viaja. Slade arrasta seu "pupilo" para Nova York, onde pretende passar um final de semana inesquecível e aproveitar cada minuto da sua vida antes de tirar sua própria vida. Durante essa viagem, a amizade criada entre os dois aos poucos vai permitindo que o sisudo militar esqueça, mesmo por alguns momentos, sua amarga infelicidade.
Um drama de essência, Perfume de Mulher explora com maestria temas como solidão, esperança e amizade. A narrativa desenvolta e os personagens bem construídos, profundos - sem no entanto tornarem-se maçantes -, ajudam a criar um clima cativante, capaz de prender a atenção e a emoção do público do começo ao fim de seus 156 minutos de duração.
Há, contudo, 2 pontos que merecem especial atenção no conjunto da obra:
O primeiro, sem sombra de dúvida, é a magistral atuação de Al Pacino - a qual merecidamente lhe rendeu um Oscar de Melhor Ator. No papel do Tenente, Pacino transmite todo o ressentimento e a amargura de alguém que, não obstante a perda da visão, deixa-se dominar também por uma triste "cegueira de sentimentos".
O segundo ponto é a trilha sonora. Eternos clássicos de beleza indiscutível, como o sensual tango "Por una Cabeza", de Carlos Gardel, deixam de fazer parte do pano de fundo e passam a contracenar ao lado de Pacino como personagens principais nas cenas mais memoráveis e emocionantes do filme (a exemplo: o tango que o Tenente dança em um restaurante, numa das principais cenas da película - sensual, apaixonado, sutil, poético, sublime... inesquecível!).
Se algo mais de relevante ainda tivesse que ser dito sobre esta obra, seria simplesmente que Perfume de Mulher é, acima de tudo, uma obra criada não para ser discutida, mas para ser sentida...
Assim como os melhores perfumes.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

FILME EASTWOOD, Clint CARTAS DE IWO JIMA

Título Original: Letters from Iwo Jima
Ano: EUA – 2006
Distribuidora: Warner Bros./Paramount Pictures
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Iris Yamashita

Acabei de ler a minha critica do filme “A Conquista da Honra” e lá para o final do texto eu comento que Clint Eastwood fez um filme tecnicamente muito acima da média, e é exatamente isso que me fez esperar com tanto apreensão o filme “Cartas de Iwo Jima”, já que parecia, para mim, que ali estava um passo a mais nessa média, e por sorte é isso que acontece.
Para quem não sabe, “Cartas de Iwo Jima” poderia ser considerado o filme irmão de “A Conquista da Honra”, enquanto esse mostrava os Estados Unidos atacando a importante ilha japonesa, o outro nos joga do lado nipônico tentando se defender, em uma missão fadada a derrota, onde eles tinham um número absurdamente menor de homens (22 mil contra os mais de cem mil americanos), sem apoio marítimo nem aéreo, apenas alguns poucos tanques, e a honra de morrer pelo solo de seu país.
E a palavra do filme é essa mesmo, honra, muito mais que no outro filme, e Eastwood sabe disso, com isso conseguindo fazer um filme contundente, emocionante e acima de tudo heróico, que por pouco, não faz o outro se tornar dispensável.
A verdade é que depois de ver o lado japonês da batalha, você acaba se perguntando até onde os Estados Unidos mereciam tomar a ilha a custa de tantas mortes, em uma guerra que estava fadada a acabar, e ainda, até onde os japoneses mereciam ser exterminados (foram quase 21 mil mortes), já que estavam ali defendendo um princípio, uma vida e, como eu já disse acima, suas honras.
O diretor parece fazer um filme mais cuidadoso em relação “A Conquista”, mais preocupado com seu andamento, criando um filme mais lento, que desenvolve muito melhor os personagens, lhes dá mais profundidade, e no final das contas te faz se identificar muito mais com eles.
Mesmo quando o ataque começa, você não vê qualquer correria, o que você vê é uma quantidade sem número de jovens acuadas, esperando pela morte certa, seus desesperos e suas dúvidas, e graças a habilidosa direção e o ótimo roteiro escrito por Paul Haggis (“Crash” e “A Conquista da Honra”) e Íris Yamashita, o filme não perde o ritmo, e você percebe que está vendo um filme de guerra diferenciado, muito mais focado no que acontece do lado de dentro dos uniformes.
E novamente, o que salta aos olhos é a parte técnica do filme, principalmente a fotografia de Tom Stern, colaborador usual do diretor, que faz um trabalho a milhas de distância de qualidade do filme “irmão”, ele cria um tom apagado, meio lavado e velho, quase sépia em alguns momentos, quase preto e branco em outros, criando uma experiência visual única.
O outro ponto alto da fotografia é algo que, em parceria com o diretor, sempre gostou de fazer (mas que foi um pouco esquecida em “A Conquista”), mostrar como as vezes a ausência de luz pode ser bem tratada, de uma hora para outra você dá de cara com cenas onde a tela é totalmente tomada pela escuridão, com a luz mostrando exatamente como é participar de uma guerra de dentro de uma caverna, sensacional.
Clint Eastwood só esbarra na hora de levar algumas cenas que poderiam ter menos cortes, americanizando um pouco demais a levada do filme, talvez com medo de tornar o filme menos popular ainda nos Estados Unidos (além da fotografia diferenciada para os padrões, o filme ainda é falado em japonês), algo que com certeza vai agradar os espectadores mais normais, mas que fará uma minoria torcer o nariz, que como eu, pode se incomodar um pouco com isso, alem do modo “Titanic” da narração (grupo de pesquisa descobre alguma coisa no começo do filme, ele recua ao passado, e ao final volta ao presente para mostrar o tal achado) que imbeciliza um pouco o público.
Mas sem sombra de dúvida nenhuma, “Cartas de Iwo Jima” é muito melhor que “A Conquista da Honra” e mostra todo poder do diretor que, como poucos, hoje sabe contar uma história e vai se superando a cada vez que vai para trás as câmeras.

FILME EASTWOOD, Clint A CONQUISTA DA HONRA

Título Original: Flags of Our Fathers
Ano: EUA – 2006
Distribuidoras: DreamWorks Distribution LLC / Warner Bros. / Paramount Pictures
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: William Broyles Jr. e Paul Haggis, baseado em livro de Ron Powers e James Bradley

Se Hollywood tivesse um Olímpo, provavelmente Clint Eastwood teria seu lugar lá, tendo feito a transição perfeita entre a frente das câmeras e a cadeira de diretor, hoje, o septuagenário, ainda mostra que tem fôlego para mais muitos e muitos anos de cinema, e pelo andar da carruagem, longe também de qualquer tipo de descida em sua carreira.
De alguns anos para cá o pistoleiro sem nome dos filmes de faroeste espaguete de Sergio Leone, vem pondo em prática toda sua experiência nas telas, a cada filme que lança, mostra um pouco mais do quanto evoluiu como cineasta, e agora é a vez de vermos a Segunda Grande Guerra (SGG) pelo ângulo de Eastwood, e como já era de se esperar, um ângulo um pouco diferente.
“A Conquista da Honra” não é um filme comum, primeiro por tratar de um período meio que esquecido pelo próprio cinema, (tirando o maravilhoso “Além da Linha Vermelha”) o chamado “Conflito do Pacífico”, onde os aliados, principalmente os yankees, foram de encontro ao Japão a fim de acabar com o único braço do Eixo que ainda não tinha caído.
A outra diferença do filme vem de como é tratada a história, adaptada do livro de James Bradley e Ron Powers (o primeiro, filho de um dos heróis do filme), ambos tratam da famosa batalha de Iwo Jima, ilhota da costa nipônica a 1200 km de Tóquio, dada como importante ponto estratégico para ambos os lados. É lá que se dá aquela famosa foto onde cinco fuzileiros e um médico (pai do escritor do livro) hasteiam uma bandeira norte-americana que até hoje é um dos símbolos da SGG, mas foi lá também que houve um dos maiores massacres da mesma guerra, mais de cinco mil aliados mortos e 500 desaparecidos, do lado do Japão as baixas chegaram a 20 mil.
O filme toma como ponto de partida o hasteamento da bandeira e, como a foto tirada daquele momento mudou o andamento dos últimos dias da guerra nos Estados Unidos, promovendo três dos soldados que foram capturados naquela fotografia em heróis de uma nação.
Mesmo que, a primeira vista, o novo filme de Eastwood possa parecer mais um daqueles exemplares de patriotada americana, o diretor consegue com muita habilidade mostrar uma história que não glorifica a nação, pelo contrário, e sim os jovens que deram sua vida por ela, sem nem ao menos saber pelo que estavam lutando.
Com um ótimo roteiro escrito por Willian Broyles Jr., que já tinha feito um ótimo trabalho em “Soldado Anônimo” em parceria com o oscarizado Paul Higgis de “Crash” e “Menina de Ouro”, “A Conquista da Honra” vai mostrando ao mesmo tempo a busca do próprio escritor James Bradley pela história da batalha, enquanto voltamos no tempo e somos apresentados aos três sobreviventes em uma turnê pelos Estados Unidos para angariar dinheiro para a guerra, mas que ainda são perseguidos pelas memórias da batalha.
De um jeito bem simples o filme vai pulando entre essas três épocas, para mostrar que, enquanto esses soldados batem de frente com exército japonês, que não tem nada a perder, e vão até os últimos limites de sua honra, do outro lado do pacífico as autoridades americanas só estão preocupados em pintar essa guerra com cores mais coloridas e arrumar mais dinheiro.
Até certo ponto, Eastwood, se mostra preocupado em mostrar um quadro cruel da guerra, aonde quem ia para o front não passava de peões sacrificáveis, mas não se preocupa muito em aprofundar essa crítica, deixando o filme um pouco leve demais, você enxerga ali uma oportunidade de explorar mais o quanto o exército aliado estendia uma guerra que já tinha acabado, mas isso fica esquecido.
Do mesmo jeito que não desenvolve tão bem como poderia os próprios personagens, que acabam apenas desfilando pela tela, sem muita importância, coisa que fica claro quando alguém morre e você praticamente não dá a mínima para isso.
Mas tirando esse problema, o diretor faz um filme tecnicamente muito acima da média, repletos de imagens de tirar o fôlego, grandiosas e empolgantes, como um filme de guerra deve ser. Como se é de esperar (desde o “Soldado Ryan”), o desembarque das tropas na ilha é um espetáculo a parte, mas que não fica sozinho, junto com os ataques dos navios e aviões aliados, que são verdadeiras pinturas em movimento.
Por mais que “A Conquista da Honra” não seja um filme que empolgue tanto, ainda é um ótimo trabalho do diretor, e com certeza vai agradar a maior parte do público

LIVRO COULANGES, Fustel de. A CIDADE ANTIGA

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: EDIAMERIS, 1961.
Fustel de Coulanges (1830-1889) foi um dos mais célebres historiadores franceses. La cité antique tornou-se um clássico da investigação histórica, abordando o tema do nascimento da cidades-Estado por meio de extensa documentação que leva o estudioso das leis, o historiador, o linguista, ou o leigo, com competência e segurança, pelo labirinto das instituições jurídicas, familiares e políticas dos dez ou doze séculos em que vigoraram o regime municipal e a religião dos antigos. A meta é ambiciosa, pois pretende colocar-se dentro da cidade antiga sem dar atenção às opiniões e fatos contemporâneos a ele. Produto de um pensamento positivista, em que se crê estar distante do objeto e podendo analisá-lo sem se misturar com ele, o autor se entrega a sua pesquisa crendo-se desapaixonado e livre. Com o correr da obra o vemos tomar o partido da cultura do último terço do séc. XIX, particularmente no último capítulo, quando fala do cristianismo, mas isso não anuvia o céu de suas pesquisas; competente, trabalhador incansável e meticuloso, nos fornece até hoje um dos mais vívidos panoramas do funcionamento das cidades gregas e romanas à época das gens, tribos e cidades-Estado.
Fustel inicia sua obra nos informando dos costumes e pensamentos a respeito da alma, da morte e a importância de se sepultar o corpo segundo extensos rituais e fórmulas pronunciadas para garantir a felicidade eterna ao falecido. As necessidades do morto são escrupulosamente satisfeitas para que este não venha a se tornar alma errante, sofrendo, assombrando e enviando doenças e má sorte à família; a morte os transformava em seres sobrenaturais e os ritos os transformavam em deuses subterrâneos. “Às almas humanas divinizadas pela morte, diz Fustel, chamavam os gregos por demônios, ou heróis. Os latinos, por sua vez, as apelidavam lares, manes, gênios”. O autor acredita que o sentimento religioso da humanidade grega e romana começou com este culto e, além disso, a própria cidade antiga deveria ser entendida como um dos resultados de seu aperfeiçoamento nos séculos que viriam, pois o fogo sagrado dedicado aos antepassados, morando no centro da casa, passou a localizar-se no centro da cidade. O deus lar era mantido e mantinha a família; se o fogo se extinguia a família toda estava extinta. Assim, seus ritos diários visavam manter ardendo essa chama que era a manifestação dos deuses familiares, seus antepassados, delineando a relação entre os mortos da família e o lar doméstico, a própria expressão do culto aos mortos. Essa religião doméstica tratava de oferecer os ritos aos antepassados de linhagem masculina de uma mesma família, excetuando todas as outras.
Depois o autor nos conduz para o seio da família, onde a religião a constitui e é seu principal esteio. Havendo uma necessária relação entre seus deuses e o solo, assentavam no chão o símbolo da vida sedentária, o lar, tomando posse de uma parte de terra que já se constitui, por esse ato, em sua propriedade. Em cada casa havia um altar e ao redor dele, toda manhã, ali se reuniam para dirigir ao lar suas orações, hinos, libações, bebidas e alimentos. O casamento foi a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica, contudo não comunicava uma família com outra, ou os rituais de duas famílias, porque o direito de realizar os ritos era transmitido de varão para varão. A mulher, ao casar, passava a adorar os antepassados do esposo; a cerimônia de casamento a impedia de adorar os deuses de seu pai e ao mesmo tempo impunha os de outra linhagem masculina. Percebe-se que a crença na divindade dos mortos e os ritos a eles devidos foram o centro da família; se acaso o fogo, que deveria ser ritualizado por um filho, se extinguisse, toda uma legião de mortos e vivos deixariam de extrair dessas relações a vida e seus valores. Por isso o centro das preocupações domésticas era continuar a descendência, proibindo-se o celibato, divorciando-se em caso de esterilidade e mantendo-se a desigualdade entre filho e filha. O direito de propriedade era totalmente privado e fundido à religião doméstica e família. Sua religião prescrevia isolar o domínio e as sepulturas; a tradição ordenava que o lar fosse fixo ao solo e não fosse o túmulo deslocado. “Não foram as leis, mas a religião, aquilo que primeiro garantiu o direito de propriedade”, nos diz Fustel. Isso levou, salvo raras exceções, a somente o filho herdar a propriedade (lar e solo), a não existência do testamento e o pátrio poder. Segundo ele a família não recebeu da cidade suas leis, mas sim, da religião. O direito privado teria existido antes da cidade. Ao legislador foi imposta a lei originada na família onde o esposo possuía o poder de senhor do lar, de rei, de magistrado.
As famílias se juntavam em genos (gens em latim) que formavam um grupo com descendência comum e origem pura, com seus deuses comuns, o que, segundo Fustel, não se pode dizer que eram associações de famílias distintas. Usavam o mesmo patronímico vivendo num “verdadeiro corpo, o verdadeiro ser vivo, do qual o indivíduo se tornava apenas membro inseparável; assim o nome patronímico foi o primeiro em data e o primeiro em importância”. A família era um Estado organizado – com seu chefe hereditário – bastando a si própria, explorando a clientela e os escravos, podendo constituir-se de numeroso grupo, com uma religião que lhe mantinha a unidade, por meio do direito privado, leis próprias e formando extensa sociedade.
O autor prossegue definindo melhor a cidade antiga, começando pelas fratrias, cúrias e tribos. Com o alargamento das famílias foi necessário conceber uma divindade superior aos deuses domésticos que fosse comum e velasse pela fratria como um todo. O alargamento das fratrias acabou gerando a tribo com seus altares aos deuses e heróis e um direito mais complexo, não havendo, acima dela, poder social algum. As cidades foram, então, reuniões de tribos que se submetiam ao deus das famílias mais fortes e numerosas; o lar passa a ser apenas o altar de um deus maior e nisso se vê a passagem de estado de fratria ou cúria (latina) para o estado de cidade. Se no começo cada tribo, tal como fora com a família, não se comunicava com outras tribos, a cidade foi o advento de associações de tribos, guardando seus ritos, segredos e identidades. Por exemplo, em Atenas, cada pessoa era ligada a quatro sociedades distintas: a uma família, a uma fratria, a uma tribo e a uma cidade. Eram instâncias que não necessariamente se comunicavam simultaneamente; um homem quando criança pertence à família e anos depois à fratria e assim sucessivamente, até que vinha a ser iniciado no culto público, tornando-se cidadão. Mas cada família mantinha seus cultos, seu altar, seus chefes seus juízes e leis próprias; só em alguns aspectos é que funcionavam como uma cidade única, uma confederação de grupos constituídos antes da formação da cidade. “Cidade e urbe não foram palavras sinônimas no mundo antigo. A cidade era a associação religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de reunião, o domicílio e, sobretudo, o santuário desta sociedade. A cidade gerava a urbe e esta era implantada de um só golpe, em um só dia”. [...]“Quando as famílias, as fratrias e as tribos convencionaram unir-se e terem o mesmo culto comum, era fundada a urbe, para representar o santuário desse culto. Assim, a fundação da urbe foi sempre um ato religioso”. Escolhida e revelada pela divindade, a localização da urbe se dava com rituais que a assentavam a partir de uma cidade, que ao formar seu corpo de leis e ritos erguiam a urbe. Isto era feito pelo fundador, o homem que realizava os ritos religiosos, sem o qual não se estabeleceria a urbe. Ele era o pai da cidade e acabava por ser um deus-lar para a cidade, sendo perpetuado pelo fogo e sacrifícios anuais das vítimas cerimoniais. O governo da cidade estava sob a autoridade religiosa do rei-sacerdote, também seu chefe político. Sua autoridade política vinha de ser sagrado e isso já lhe conferia, por extensão, o poder de magistrado, fato que não surpreende, uma vez que o rei era escolhido entre os paterfamilias – os senhores do lar que reinavam absolutos nos tempos das famílias e que, na cidade, representavam a aristocracia.
A lei estava nas mãos dos pontífices que eram considerados os únicos jurisconsultos competentes por causa de sua origem religiosa. E como as leis advieram dos deuses, nada mais natural que o direito fosse exercido pelo rei pontífice, que a conhecia de ter sido iniciado por seu pai que, por sua vez ouvira de seu pai, e assim por diante. Também não “bastava habitar a urbe para se estar submetido às suas leis e pelas mesmas protegido; cumpria ser seu cidadão. A lei não existia para o escravo, como também não protegia o estrangeiro” [bem como estes não podiam] “entrar na partilha das coisas sagradas”. Ninguém poderia se naturalizar numa cidade se já pertencesse a outra urbe, sendo esta sua pátria – terra pátria. Segundo o autor a religião fazia de cada urbe um corpo, sem possibilidades de associar-se a nenhum outro. O isolamento era a lei da cidade; sua autonomia política, jurídica, governamental, religiosa e moral em relação às outras era seu bem maior. Esse formidável regime municipal, contudo, sempre esteve ameaçado pela resistência interna de clientes e escravos, bem como pelos ataques de outras cidades. Logo foi necessário uma federação de cidades para que se pudesse admitir as novas reivindicações políticas e jurídicas, bem como aplacamento das discórdias e, no limite, a expansão do poder de certas cidades, como Atenas, Esparta e Roma.
Na última parte de seu livro Fustel se dedica a mostrar o desmonte deste regime municipal por uma série de revoluções que se iniciam pela retirada da autoridade política dos reis, atitude tomada pela aristocracia, constituída de patres – os chefes de família. Em Esparta, Atenas e Roma a realeza foi alvo de constantes ataques da aristocracia – os eupátridas. Em seguida houve alterações na constituição da família, desaparecendo a primogenitura, desagregando as gens, quase sempre nos movimentos que a realeza fez para enfraquecer os iguais – os chefes das gentes. A libertação dos clientes acabou arrancando a terra à religião e entregou-a ao trabalho, já inaugurando o direito à posse, mas não, ainda, o de propriedade. Talvez a revolução mais contundente, pelo menos em extensão, tenha sido a participação da plebe no regime da cidade, colocando no poder os tiranos, chefes que não podiam ser reis, por faltar-lhes os segredos religiosos, inaugurando o poder do homem sobre o homem, com a missão precípua de proteger a plebe contra os ricos. Daí em diante a aristocracia, que não conseguia voltar ao poder, passou a colaborar com as tentativas de se instalar regimes monárquicos, organizando-se em um corpo semelhante a aristocracia e se espalhou por toda a Grécia e Itália (séc. VII ao V a.C.), distinguindo-se em classes apenas pela quantidade de riqueza. Nesse regime cada cidadão podia exercer o sacerdócio por um ano, sem privilégios de nascimento, de religião ou político. Roma foi exceção, onde o patriciado manteve o poder, criando-se o tribunado da plebe – o plebeu tornava-se ele mesmo sagrado para que pudesse legislar sobre a plebe. Esse caráter de sacralidade era transmitido de tribuno a tribuno, tendo sido doado pelos religiosos do patriciado que eram os criadores da sacralidade doravante transmitida.
O direito tornou-se público e conhecido por todos, sendo do povo a emanação do poder de promulgar leis que o legislador possuía, bem como as leis deixam de ser patrimônio das famílias sagradas. Com isso, surge a revolução democrática, onde qualquer cidadão rico poderia ser, por exemplo, magistrado, e em tese todos podiam alcançar os mais alto degraus sociais sem serem eupátridas ou patrícios. Mas também, por causa das guerras que dizimavam as classes superiores, estas foram obrigadas a oferecer armas e títulos às classes inferiores que acabaram por formar parte importante do povo. Por ser uma democracia onde todos, por direito, exerciam as funções da malha de governo, cedo acabou por desaparecer o regime democrático, sufocado pelo excesso de atribuições do cidadão e do quanto caro isso era para ser mantido. O regime municipal se esvaiu por motivos bem diversificados: as cidades-Estado se uniram, formando federações; filósofos como Pitágoras e Anaxágoras combateram as leis da cidade; os sofistas começaram a falar de uma nova justiça; Sócrates combate a tradição; as idéias de Platão e Aristóteles são contrárias ao regime municipal. Todos foram responsáveis pelo seu enfraquecimento: desde as tímidas investidas de Platão (que adorava o governo da cidade e as tradições) até as fortes posições políticas de Zenão (concebendo a idéia de Estado como composto por todo o gênero humano). Mas quem deu o toque mais profundo e duradouro nestas transformações foram os estoicistas, emancipando o indivíduo, rejeitando a religião da cidade, desdenhando da servidão do cidadão ao Estado, libertando sua consciência, incitando-o a participar da política e estimulando-o a aperfeiçoar-se intimamente (algo inexistente nos regimes anteriores).
O autor e seus contemporâneos
Ao leitor de Fustel parece que este esteve inteirado das idéias do francês Auguste Comte (1798-1857) e sua obra “Curso de Filosofia Positiva”, onde afirma que todos os fenômenos estão sujeitos a leis naturais uniformes; o projeto comtiano era fazer com as ciências sociais o que Galileu, Kepler e Newton fizeram pelas ciências naturais, fundamentando suas teorias nas leis das três etapas: a teológica (onde o homem explica os fenômenos naturais e sociais em termos divinos), a metafísica (onde a explicação está em forças abstratas) e na científica – o positivismo (explicação baseada em leis imutáveis da natureza). Segundo o positivismo, os estudos históricos se atrasaram em relação à física, matemática ou astronomia. É exatamente com essa impressão que ficamos ao ler sua obra. Tanto a de que ele tentou corrigir esse atraso, bem como o de que não foi tão positivista. Assim, o vemos declarar, de modo positivo, a respeito de crença: “Nada de mais poderoso existe sobre a alma. A crença é obra do nosso espírito, mas não encontramos neste liberdade para modificá-la a seu gosto. A crença é de nossa criação, mas a ignoramos. É humana, e a julgamos sobrenatural. É efeito do nosso poder e é mais forte do que nós” (139/140). Mas, antes (p. 2,3), disse: “Tentaremos mostrar por que regras eram regidas estas sociedades e deste modo mais facilmente verificaremos por quais razões essa mesmas regras jamais poderão voltar a reger a humanidade”. Quando pensamos em condições de produção da sociedade, em termos ideológicos, Fustel nos faz deter o pensamento, dizendo que a “causa que as produz deve ter algo de poderoso, devendo residir no próprio homem, [que] algo do próprio homem se transformou. Temos, efetivamente, algo do nosso ser a modificar-se de século em século: a nossa inteligência”. Mas, para nosso século, a identidade é um movimento na história (E. Orlandi, 1990); a inteligência, o sujeito são precipitados políticos, algo que escapa a Fustel, tanto por tentar atender ao positivismo, quanto por não ser fiel a ele, ficando no estágio metafísico de produção de conhecimento, afirmando que a cidade dos antigos, sua política, sua urbe, suas instituições jurídicas foram produtos da religião, isto é, da crença destes homens. Com isso, ele não parece ter conhecido as idéias de outro contemporâneo, dessa vez alemão: Karl Marx, teórico social, interessado na economia e história (aqui não há novidade, pois Marx só foi reconhecido já no séc. XX). Se Fustel, brilhantemente, nos mostra a luta de classes em suas entranhas, não parece disposto a dizer, segundo a agenda marxiana, que a história é a história da luta de classes e que seu fundamento é econômico; ou que “cada forma de produção [de riquezas] cria suas próprias relações de direito, formas de governo etc” (1996, p.29), preferindo centrar sua atenção na crença religiosa. Esta é que seria o motor social da família, do genos e depois da cidade-Estado. Ele crê, mais exatamente, que a economia estava a serviço da religião. Por um viés, hoje corrente, por exemplo, na teoria do discurso (Pêcheux, 1995; Orlandi, 2001), sabemos que a história deve ter como referência as condições de produção que a implica num “processo histórico determinado, em última instância, pela própria produção econômica” (Pêcheux, p.190). Termina seu livro dizendo: “Fizemos a história de uma crença. Estabelece-se a crença: constitui-se a sociedade humana. Modifica-se a crença: a sociedade atravessa uma série de revoluções. A crença desaparece: a sociedade muda de aspecto. Esta foi a lei dos tempos antigos” (p.451). Talvez Marx dissesse que o verdadeiro objeto de estudos de Fustel deveria ter sido a luta pelo poder econômico. Quando este passou de uma classe a outra a religião tratou de trazê-lo de volta ou novas religiões se fizeram necessárias para administrar essas passagens. Diga-se, também, que Fustel nos brinda com um panorama nítido do nascimento do Direito e suas instituições. Algumas das questões de sua época (que sobrevivem ainda hoje) sobre a origem de certas figuras jurídicas são tratadas com cuidado e de modo bastante consequentes. Trata-se, pois, de uma obra que bem pode auxiliar o estudioso das leis antigas.
Sua obra nos impressiona vivamente, pela obstinação em determinar seu objeto de estudos. Talvez se possa dizer de sua obra o que se disse de Marx: que é um clássico a quem nunca se adere integralmente. E se a obra marxiana obriga a releituras, a obra de Fustel, por seu turno, e pelo ofício de historiador, é uma releitura, ela mesma, da história da história.

REFERÊNCIAS:

COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva (Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1996.

MARX, Karl. Para a crítica da economia política (Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1996.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso. 3.ed. Campinas: Pontes, 2001.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. 2.ed. Campinas: Editora Unicamp, 1995.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

LIVRO DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix-O QUE É FILOSOFIA?

Coleção TRANS
Editora !34
A arte conserva e se conserva em si, porém, se o material que a constitui se desfizer ela também será desfeita, não acontecendo o mesmo com a sensação, e isso não tira a contribuição que deu ao mundo, a arte quando é feita, torna-se independente de seu modelo, seu espectador ou auditor.
Acredito que depende de seu criador para ser feita, de seu espectador ou auditor para completar seu ciclo de ser arte e, a partir de sua consagração, então, torna-se independente tanto de seu criador quanto de quem a experimenta, o que fica é o prazer estético, é o que se sente, o que se “usurpa”, o que se conserva é o bloco de sensações.
Os perceptos são independentes do estado daqueles que o experimentam e, os afectos transbordam a força daqueles que são atravessados por ele, é neste contexto que as sensações, os perceptos e os afectos, excedem qualquer vivido.
O texto afirma que o composto (obra) deve manter-se de pé sozinho, esse é o grande desafio do artista, é a força da verticalidade, e para tanto muitos recorrem a inverossimilhança ou imperfeição física, é o que acontece com muitas obras de Pablo Picasso, por exemplo, e estes recursos talvez sejam alguns dos elementos necessários para tornar uma obra de arte monumento e, por este ângulo não creio que qualquer obra de arte seja um monumento, entendendo por monumento um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas sua própria conservação. Isto porque acredito que nem toda obra consegue alcançar o status de monumentos o qual se falou ainda pouco. Contudo, se o critério para estabelecer obra de arte for somente as que consigam ser um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas sua própria conservação, então, é forçoso que toda obra de arte seja um monumento.
O texto diz que a memória intervém pouco na arte, que a fabulação criadora nada tema a ver com uma lembrança, mas talvez isto dependa do propósito de cada autor, dependa se quer remanejar sensações ou cria-las. A memória é fato presente em qualquer ato criador, manifestando-se consciente ou inconscientemente sob algum estado de espírito, e isto se verificará na cor, no traço, no gesto...; e das duas formas creio ser possível exceder estados perceptivos e paisagens afetivas, ir além conservando sensações. Liberar vida lá onde ela é prisioneira ou insufla-la onde não existe.
Acredito que a afirmação de que as figuras estéticas não têm nada a ver com a retórica precisa ser delimitada. Partindo do conceito de que retórica é a arte de persuadir, houve um momento (e ainda há nas entrelinhas) em que a arte era muito retórica, era só retórica, e partindo de seu outro conceito que também é exprimir-se, a arte foi e continua sendo retórica, é ato de exprimir e expressar-se, é ação de exteriorização de impressões e sensações.
Falando sobre arte e natureza, a carne é o composto de sensações, a casa é a junção finita dos planos coloridos e o universo é como o fundo da tela, o único grande plano. Neste contexto, natureza e arte se confundem, o território abre para forças cósmicas que sobem de dentro ou que vêm de fora e tornam sensíveis seus efeitos sobre o habitante. As forças podem fundir-se, decompor-se ou alternarem-se ou ainda enfrentarem-se. É a conjunção de dois elementos vivos que são casa e universo, e suas forças (sensações) que cairão sobre o habitante, a carne.
A grande questão é fazer a obra manter-se de pé, conservar-se e sustentar-se, e para isso acredita-se ser necessário saturar, saturar e só guardar a sensação que nos dá um percepto, e através dos meios materiais arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar os afectos das afecções, como passagem de um estado a um outro. Há que existir uma relação íntima entre o composto de sensações e o meio material.
Na verdade, instalam-se grandes questionamentos sobre os fatores estéticos, técnicos e funcionais, parece uma busca intrínseca e nas entrelinhas, do que é arte, como fazer, como inserir sentimento, dar continuidade. Como compor...
Ouso dizer que arte não se basta em si mesmo e por si mesmo, mas em sensações várias e questionamentos vários que pode suscitar em um indivíduo ao entrar em contato com ela visto que toda a sensação é uma questão, mesmo se só o silêncio responda a ela.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

LIVRO FOUCAULT Michael. A ARQUEOLOGIA DO SABER

FOUCAULT Michael. A ARQUEOLOGIA DO SABER, . 7.ed. 3 reimp. Trad Luis F. Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
Este texto é, sem dúvida, muito mais confuso e denso se comparado a “Microfísica do Poder”, obra do mesmo autor. O excesso de parágrafos interrompe o ritmo da leitura tornando a assimilação dos enunciados deveras custosa. Porém, a proposta de Foucault é esquadrinhar a história da linguística e, neste sentido, a obra expõe várias análises sobre as práticas discursivas construídas no decorrer dos séculos XVIII e XIX. O discurso é estudado minuciosamente e, é a isso que Foucault denomina “Arqueologia do saber”. Ele define seu método arqueológico a partir da análise de seus objetos que são o discurso, o enunciado e o saber, presentes em todos os questionamentos do texto.

FILME ROBIN HOOD

Elenco: Russell Crowe, Cate Blanchett, Mark Strong, Matthew Macfadyen, Danny Huston, Kevin Durand, William Hurt, Max von Sydow, Scott Grimes, Eileen Atkins, Léa Seydoux, Bronson Webb, Oscar Isaac, Robert Pugh, Alan Doyle
Direção: Ridley Scott
Impressionante o interesse que ainda se tem por Robin Hood. O personagem já foi tão adaptado para o cinema que fica até difícil fazer uma listagem. Entre os mais conhecidos e elogiados estão AS AVENTURAS DE ROBIN HOOD, de Michael Curtiz, de 1938, e ROBIN E MARIAN, de Richard Lester, de 1976. E os que mais a platéia de hoje lembra são os produzidos em 1991, num embate entre a Warner e a Fox: ROBIN HOOD – O PRÍNCIPE DOS LADRÕES, com Kevin Costner e aquela grudenta canção do Bryan Adams, e o concorrente ROBIN HOOD – O HERÓI DOS LADRÕES. Desta vez, o fora-da-lei que tira dos ricos para dar para os pobres está de volta, mas numa versão bem diferente, numa tentativa de dar um viés mais histórico para o personagem, apresentando o momento anterior a quando Robin Longstride se tornou uma lenda. Se é que ele existiu de verdade.
No ROBIN HOOD (2010) de Ridley Scott, vemos os acontecimentos anteriores às famosas ações do personagem contra o governo cruel do Rei João. Robin começa como soldado do Rei Ricardo Coração de Leão, tendo participado das cruzadas e sendo responsável até mesmo por entregar a coroa do Rei Ricardo a seu irmão, o sucessor Rei João, que é pintado como uma figura asquerosa e perversa por Oscar Isaac. Russell Crowe, em sua quinta parceria com Scott, faz praticamente uma reprise de GLADIADOR (2000), inclusive com o mesmo corte de cabelo. O ator até tentou deixar as madeixas crescerem por um tempo, mas a produção do filme demorou tanto para começar que ele resolveu cortar curto mesmo. Houve também mudanças nos figurinos, em comparação com os outros filmes de Robin Hood.
Ridley Scott deu preferência por uma trama cheia de intrigas políticas, envolvendo os reinos da França e da Inglaterra. Houve também uma preferência por uma narrativa mais tradicional, até lembrando os épicos produzidos em Hollywood e na Itália nos anos 1960. Se por um lado isso deixa a câmera de Scott menos inquieta, o velho problema dos cortes que nos deixam desorientados e que eu atribuo como falha do diretor aparece nas poucas cenas de batalhas. Na principal delas, perto do final do filme, numa praia no País de Gales, mal dá para entender o que está acontecendo. Perde-se a noção de perspectiva.
Isso me fez lembrar das excelentes cenas de batalha de CORAÇÃO VALENTE, de Mel Gibson, e de como o “Mad Mel” faria as batalhas não apenas mais sangrentas, mas também filmadas de modo a deixar o espectador senão inserido na ação, mas pelo menos a par do que está havendo. Por isso que ainda acredito que Scott se sai muito melhor em dramas mais intimistas. A cena do lançamento das flechas me fez lembrar de HENRIQUE V, de Keneth Branagh, que capricha muito mais. Por falar nisso, interessante como os reis ingleses, pelo menos alguns, parece que tinham esse hábito de entrar junto com os soldados no combate, em vez de ficarem no conforto do palácio.
Scott quase consegue fazer da relação entre Robin e Marion (Cate Blanchett) interessante do ponto de vista romântico. A dupla de astros pelo menos fez a sua parte. Blanchett, aliás, é um caso especial entre as atrizes contemporâneas. Ela praticamente não erra. No elenco, vemos também Max Von Sydow como o velho pai de Marion, e William Hurt, em papel discreto, quase invisível. Uma pena que tanta produção e um elenco tão bom tenha resultado num filme modorrento, um convite ao sono.

domingo, 11 de setembro de 2011

FILME AMISTAD

Em Amistad, o diretor Steven Spielberg toca numa velha ferida norte-americana: a questão da escravidão e os conflitos étnicos surgidos a partir deste problema. O roteiro, baseado em fatos verídicos, relata a trajetória de um grupo de 53 negros, desde o seu aprisionamento por traficantes de escravos até o retorno ao continente africano. Criticado dentro e fora dos Estados Unidos, o filme chegou a ser classificado de maniqueísta, pela maneira romântica como o enredo se desenvolve – com a clássica contraposição entre o bem e o mal.
O protagonista da trama é o negro Cinque, que lidera um motim no navio-negreiro Amistad em 1839. A embarcação deveria transportar os escravos para Cuba, porém, foi parar em águas norte-americanas, onde foi recolhida pela guarda-costeira. A partir daí é travada uma longa batalha judicial, com a coroa espanhola, traficantes de escravos e comerciantes americanos reclamando a posse da "mercadoria humana" (gente negra). Com o seu futuro sendo decidido nos tribunais, o grupo de negros tem que contar com os serviços de um ambicioso advogado branco e o auxílio de um negro livre que mantém um jornal. Com a ampla repercussão do episódio no meio político, o caso foi parar na Suprema Corte Americana, a mais alta instância judicial do país, onde os negros foram defendidos pelo ex-presidente John Quincy Adams.
Baseado em história verídica, tudo se inicia com uma turbulenta jornada marítima numa embarcação que é identificada como "La Amistad".
Trata-se de um navio negreiro que mo século XIX, em 1839, sofre um enorme revés ao ver os prisioneiros se rebelarem e trucidarem grande parte da tripulação.
Isso se deve ao fato de muitos negros, dezenas de africanos, infelizmente, serem seqüestrados de seus lares na África para servirem de escravos. A bordo do navio, se libertam das correntes e assumem o comando. Matam a maior parte da tripulação e obrigam os sobreviventes a leva-los de volta à África.
Os negros sonhavam retornar à África, mas, os líderes da rebelião, desconhecendo os caminhos marítimos pelos quais conseguiriam voltar para casa, mantêm dois prisioneiros que devem levá-los de volta a África. São traídos e aportam na América do Norte, já que, desordenadamente, navegaram até a costa de Connecticut.
Na costa americana o navio espanhol é capturado pela guarda-costeira, contendo 53 escravos negros amotinados a bordo. Ao chegar em território americano, aprisionados, são levados a um grande julgamento, acusados de assassinos, ocasião em que se cria uma enorme polêmica entre os abolicionistas e os conservadores, num período onde as divergências internas do país, entre o norte abolicionista e o sul escravista, caracterizavam o prenúncio da Guerra de Secessão.
Os sobreviventes da tripulação pleiteiam a posse da "mercadoria" humana transportada no Amistad, são contestados pela rainha da Espanha, que também quer se apropriar do conteúdo da embarcação (com base no fato de que o navio era de bandeira espanhola); além deles, também os oficiais norte-americanos que apreenderam o barco e controlaram o motim desejam a posse dos cativos para vendê-los.
Contra eles se levantam abnegados defensores da liberdade humana, lutando contra a espoliação e a exploração características da escravidão. Capitaneados por Theodore Joadson (Morgan Freeman) e defendidos no tribunal pelo jovem e impetuoso advogado Roger Baldwin (Matthew McConaughey), os escravos liderados por Cinqué (Djimou Hounsou) desafiam as leis e impingem um recomeço para a história republicana norte-americana. Contam, para isso, com o auxílio inestimável do ex-presidente John Quincy Addams (Anthony Hopkins).
A sorte deles depende do jovem advogado que os representa. Porém, como se trata de uma época de reeleição, o destino dos 53 escravos se torna uma questão política ainda mais complicada pelas disputas constantes entre o Sul (escravocrata) e o Norte (menos conservador e aberto ao abolicionismo).
Inicialmente, os africanos são julgados pelo assassinato da tripulação, mas o caso toma vulto e o presidente americano Martin Van Buren (Nigel Hawthorn), que sonha ser reeleito, tenta a condenação dos escravos, pois agradaria aos estados do sul e também fortaleceria os laços com a Espanha, pois a jovem Rainha Isabella II (Anna Paquin) alega que tanto os escravos quanto o navio são seus e devem ser devolvidos.
Mas os abolicionistas vencem e, no entanto, o governo apela e a causa chega a Suprema Corte Americana. Este quadro faz o ex-presidente John Quincy Adams (Anthony Hopkins), um abolicionista não-assumido, sair da sua aposentadoria voluntária para defender os africanos. Aliás, cena esta que fica muito marcada no filme, pois se destaca pela busca da Justiça, algo que marca profundamente, creio, a maior parte dos seres humanos.
Como o navio Amistad é interceptado e sua "carga" – os negros comprados na Fortaleza de Lomboko, Serra Leoa – aprisionada até o julgamento, a questão é:
- A quem pertencem os negros do Amistad?
A partir daí, toda a trama do filme se desenrola mostrando, vez por outra, características dos povos ( membros de várias tribos ) africanos, toda forma de tortura e humilhação por que passavam os negros durante sua penosa viagem nos navios negreiros e o julgamento do caso pela Corte Norte Americana. Cenas chocantes que deprimem o público que assiste a trama.
A discriminação racial nos Estados Unidos, questão muito próxima da nossa realidade, em meados do século XIX, era ainda mais acirrada. Os negros eram, em sua maioria, ainda escravos. Um ou outro já possuía certa liberdade e, poderíamos dizer até, certo espaço para a formação de uma comunidade negra organizada. Essa organização começa a surgir a partir de 1866, logo que a escravidão é abolida, com a criação da 13a emenda da Constituição Norte Americana. "Separate but equal".
Já havia, por exemplo, um grupo de alfabetizados no idioma inglês. No filme aparece uma redação que se ocupa de duas edições do mesmo jornal, ou seja, uma para brancos que noticia o fato como "O massacre no mar" e outra para negros, com a manchete "Luta pela liberdade no mar". No Brasil o slogan é outro: "Juntos, mas diferentes".
Abro aqui um parêntese para enfatizar minha opinião, aproveitando o gancho do filme, para dizer que negros e brancos são iguais. Separações, sectarismos, intolerância etc. fazem parte de uma conduta etnocêntrica, presente na personalidade humana, capaz de esvaziar suas mentes em torno de uma utópica e relutante superioridade, baseada apenas em aparências.
A organização duma comunidade negra consciente de seu papel social, até hoje não aconteceu no Brasil. Os poucos negros que assumem sua etnia são considerados minoria no país, privados normalmente dos seus direitos como cidadão, agravando-se ainda mais a desigualdade e a injustiça que impera sobre a maioria afrodescendente da população.
O negro, tanto quanto o branco, seres humanos, necessitam ser respeitados como cidadãos livres, inseridos numa sociedade justa, em que todos os direitos sejam amplamente respeitados e o leque de leis, presentes na Constituição do país, se faça valer pela vontade do povo, através de uma democracia limpa e leal.
Voltando ao caso "Amistad", apesar de racistas, os Estados Unidos não concordavam com o tráfico de escravos. Cria-se neste episódio, portanto, um tremendo impasse. Mesmo que de forma implícita, fica claro que a questão econômica é o pilar daquela Corte americana. Isto também diz respeito ao posicionamento da Espanha, que reclamava a posse dos escravos, pois o Amistad se tratava de um navio espanhol que naquela época expandia seu mercado consumidor, tendo os negros trabalhadores como principal alvo dos seus negócios.
A questão da escravidão no filme, relacionava-se com a guerra civil americana entre o norte e o sul, no tocante aos lucros altíssimos auferidos com a mão de obra escrava pelos grandes escravocratas sulistas.
Durante o julgamento, o advogado de acusação acaba questionando a legitimidade da escravidão. Ele coloca que os africanos, assim como os europeus e americanos sempre utilizaram desta arma contra os mais fracos e em benefício próprio em guerras ou como pagamento de dívidas. E isso não era nada inédito. Ao contrário, em toda história ouviu-se falar em trabalho forçado, servidão, etc., o que não justifica nem autoriza moralmente um ato tão cruel como este, ou seja, além de escravizar um grupo apenas pela cor, desrespeitavam a ética, já que invadiam países livres para contrabandearem seres humanos, logrando a todos uma vida prisioneira e dolorosa, totalmente contradizente com os mínimos valores humanos.
É inadmissível legitimar a escravidão de um povo, muito menos por práticas econômicas que os resumissem a simples e barata mercadoria. No entanto, não deve ser apenas umas palavras de ordem, mas sim um profundo aprendizado, necessário a cultura dos povos de todas as raças.
Amistad, diante de tantas mortes, pode se considerar como tendo um final triste, mas não terminou ainda... Muiá ma muiê...era um canto que os negros entoavam tanto nas derrotas quanto nas vitórias... muiá ma muiê!
CONTEXTO HISTÓRICO
O filme mostra o processo de julgamento de negros nos Estados Unidos, 22 anos antes do início da Guerra Civil, num contexto marcado pelo expansionismo em direção ao Oeste e pelo acirramento das divergências do norte protecionista, industrial e abolicionista, com o sul livre-cambista, agro-exportador e escravista.
Na passagem do século XVIII para o XIX, os Estados Unidos recém-independentes formavam uma pequena nação, que se estendia entre a costa do Atlântico e o Mississipi. Após a independência, o expansionismo para o Oeste foi justificado pelo princípio do "Destino Manifesto", que defendia serem os colonos norte-americanos predestinados por Deus a conquistar os territórios situados entre os oceanos Atlântico e Pacífico. A crescente densidade demográfica, a construção de uma vasta rede ferroviária iniciada em 1829 e a descoberta de ouro na Califórnia em 1848, também representou um estímulo para conquista do Oeste.
A ação diplomática dos Estados Unidos foi marcada por um grande êxito nas primeiras décadas do século XIX, quando através de negociações bem sucedidas os Estados Unidos adquirem os territórios da Lousiana (França), Flórida (Espanha), além do Oregon (Inglaterra) e até o Alasca da Rússia, após a Guerra de Secessão.
Em 1845, colonos norte-americanos proclamaram a independência do Texas em relação ao México, iniciando-se a Guerra do México (1845-48), na qual a ex-colônia espanhola perdia definitivamente o Texas, além dos territórios do Novo México, Califórnia, Utah, Arizona, Nevada e parte do Colorado. Destaca-se ainda a incorporação de terras indígenas, através de um verdadeiro genocídio físico e cultural dos nativos.
O intenso crescimento do país, acompanhado de uma grande corrente de imigrantes europeus atraídos pela facilidade de adquirir terras, torna ainda mais flagrante, o antagonismo entre o norte e o sul. No norte, o capital acumulado durante o período colonial, criou condições favoráveis para o desenvolvimento industrial, cuja mão-de-obra e mercado encontravam-se no trabalho assalariado. A abundância de energia hidráulica, as riquezas minerais e a facilidade dos transportes contribuíram muito para o progresso da região, que defendia uma política econômica protecionista. Já o sul, de clima seco e quente, permaneceu estagnado com uma economia agro-exportadora de algodão e tabaco baseada no latifúndio escravista. Industrialmente dependente, o sul era ferrenho defensor do livre-cambismo, mais um contraponto com o norte protecionista.
Essas divergências tornam-se praticamente irreconciliáveis com a eleição do abolicionista moderado Abraham Lincoln em 1860, resultando no separatismo sulista, iniciando-se assim em 1861 a maior guerra civil do século XIX, a Guerra de Secessão, também conhecida como "Guerra Civil dos Estados Unidos", que se estendeu até 1865 deixando um saldo de 600 mil mortos.
FINAL:
No julgamento em primeira instância a brilhante defesa do jovem advogado, Roger Baldwin, conseguiu provar, através do Inventário da carga, que os negros não foram comprados em Cuba, mas eram africanos e tinham sido capturados na Fortaleza de Lomboko, Serra Leoa – AFRICA - transportados até Cuba, onde trocaram de navio e embarcaram no navio negreiro espanhol La Amistad (A Amizade) para mais tarde serem comercializados.
Acrescenta Baldwin: Se a Constituição dos EUA reconhecia a situação de pessoas que prestavam serviços, possuíam direitos e, de nenhuma forma, poderiam considera-los como propriedade de alguém. Mas se fossem considerados "como coisa" (escravos eram tidos como coisa) não poderiam estar sendo julgados.
Assim sendo, o Tribunal Distrital rejeitou a acusação do Governo dos EUA e negou licença para processar os escravos por assassinato ou para extraditá-los para a Espanha.
O Executivo americano, então, apelou para o Tribunal de Circuito e, posteriormente para a Suprema Corte dos EUA. Nesta última fase, a defesa dos africanos ficou a cargo de John Quincy Adams, antigo Presidente dos EUA e de Roger Baldwin, que atuara em Connecticut na primeira instância. Todavia, foi decisiva a sustentação de Adams para o convencimento da Suprema Corte.
John Adams ao iniciar a sua extensa defesa se reporta à noção de Justiça definida pelas Institutas de Justiniano (obras didáticas, visando à iniciação dos estudantes no aprendizado sistemático da ciência do direito.) como a vontade constante e perpétua de assegurar a cada um o seu direito, destacando que a decisão da Corte incidiria sobre a liberdade e a vida de cada uma das pessoas que ele estava representando.
A defesa deste nobre advogado, John Adams, é calcada nos valores da fundação do país, sobre a importância da tradição cívica republicana em Roma e nos EUA e reflexões sobre o papel da Suprema Corte americana como guardiã dos valores constitucionais. Sob o ângulo da Constituição estava implícito o reconhecimento da situação escrava em vários artigos que dispunham sobre a representação dos Estados no Congresso, princípios de limitação tributária, medidas relativas aos escravos fugitivos ou a atuação de tropas federais na repressão de rebeliões de escravos. Reportava-se, sobretudo, àqueles que haviam idealizado a República em Roma, o período da Antigüidade em que mais se inspiraram os Fundadores dos EUA, notadamente Cícero e Tácito. Frisou bem que esta noção de Justiça que figura nas Institutas, teria sido, precisamente, ignorada pelo Executivo norte-americano em correspondência do Secretário de Estado com o Embaixador da Espanha, na qual o termo Justiça fora substituído por Simpatia, ou seja, simpatia pela causa dos brancos, remanescentes da tripulação, e antipatia pelos negros. Todavia, enfatizava, a decisão em primeira instância, que julgara os atos de violência de ambas as partes, mostraram que a Justiça não se deixara levar por impulsos de simpatia ou de antipatia e dera ganho de causa aos negros.
"Eu não conheço nenhum direito que se aplique ao caso dos meus clientes, salvo o direito natural e de natureza divina, sob o qual nossos pais colocaram a nossa própria existência nacional”.
Salienta que a lei maior a ser aplicada ao caso é o direito natural, pois as circunstâncias eram tão peculiares, imprevisíveis, que apenas um direito acima dos códigos e tratados, como o direito natural, poderia ser aplicado a ele: eu não conheço nenhum direito que se aplique ao caso dos meus clientes, salvo o direito natural e de natureza divina, sob o qual nossos Pais colocaram a nossa própria existência nacional. (I know of no other law that reaches the case of my clients, but the law of nature and of Nature’s God on which our fathers placed our own national existence). E arremata: acredito que será com base neste Direito que a Corte decidirá o caso de meus clientes
Adams, no Caso Amistad, em sua defesa perante a Suprema Corte, evoca, exatamente, aqueles princípios proclamados pelos Pais Fundadores como sendo os alicerces do Estado norte-americano. Aqueles negros que, diversamente do alegado, não eram propriedade de ninguém, nem em Cuba, nem na Espanha, mas provinham da Costa do Marfim, onde haviam sido capturados, tinham os direitos à vida e à liberdade. Desconhecê-los era renegar o passado, era romper com a tradição, era fragilizar a autoridade moral detida pelos continuadores da fundação. O efeito decisivo de tais argumentos sobre o espírito dos Ministros da Suprema Corte confirmaria a profundidade da convicção de serem eles destinados a preservar os valores que haviam embasado a fundação dos EUA.
Se na Roma Americana cabia ao Senado exercer a sua autoria moral na preservação dos valores da fundação, nos EUA é à Suprema Corte que incumbe velar pela manutenção dos princípios consagrados na Constituição. Alguns consideram que seria necessário ir além do constitucionalmente explicitado para identificar a intenção mais profunda dos Pais Fundadores.
Adams, em sua visão ampliada pelo exemplo da longevidade da fundação de Roma, soube reativar, nos julgadores do Amistad, a consciência de sua responsabilidade na preservação dos princípios do direito natural, muito acima dos desígnios imediatistas dos próprios Fundadores.
Assim, após o emocionante discurso proferido pelo brilhante Quincy Adams, todos os negros são libertados e Cinque, líder do motim, lembra que os seus ancestrais diziam que todos nós somos o resultado da soma de nossos ancestrais. Por esse motivo, a defesa que lhes fora concedida, além da liberdade alcançada, foi fruto da JUSTIÇA que já vinha no sangue de cada um deles, negros ou brancos, mas que pesava em seus valores humanos