segunda-feira, 23 de julho de 2012

LIVRO Nêmesis de Philip Roth

ROTH, Philip. Nêmesis. São Paulo, Companhia das Letras, 2011

Nêmesis era a deusa grega da vingança. Ela tinha especial prazer em torturar heróis que caíam em "hybris" (desmedida) e pensavam ser outra coisa que mortais sob o domínio dos deuses e das moiras, senhoras divinas quase cegas que teciam o destino de todos.
Fosse eu religioso, minha espiritualidade seria a trágica dos gregos, apesar da grandiosa beleza do sistema bíblico. Não que eu ache "legal" o politeísmo, mas porque eu acho que a visão de mundo dos trágicos é a melhor. A piedade trágica, aquela despertada pela empatia entre nós e os infelizes heróis do teatro grego, é que levou Nelson Rodrigues a dizer que devíamos assistir ao teatro de joelhos.

A acusação feita aos trágicos é que eles negam o sentido último da vida, porque os deuses gregos eram uns loucos apaixonados e sem projeto moral para o mundo (o destino é sempre cego). Isso é verdade. O Deus de Israel, que para os cristãos encarnou no judeu Jesus, tem um projeto moral para o mundo, mesmo que não saibamos ao certo qual é. E isso nos acalma.
A tragédia marcou a cultura de forma profunda, os exemplos são inúmeros: Shakespeare, Gracian, Schopenhauer, Nietzsche, Camus, Cioran, Nelson Rodrigues, Philip Roth.

É desse último que quero falar hoje. Especificamente de seu livro mais recente, "Nêmesis", a história do jovem professor de educação física Bucky Cantor atravessando o grande surto de pólio nos EUA no verão de 1944.

Os heróis de Roth sempre são esmagados entre a vida pessoal, os vínculos afetivos e ideias, e grandes processos históricos ou "cósmicos" que têm um efeito aleatório na vida deles -e sempre destrutivo.
Como exemplos históricos, vemos a Guerra da Coreia, o macarthismo versus comunismo nos anos 1950 nos EUA, a contracultura, a canalhice do politicamente correto nas universidades americanas. Como exemplo cósmico, o envelhecimento, a perda das funções sexuais ou de memória, as pragas (como a pólio em "Nêmesis").

No caso desse romance, a praga da pólio ocupa o lugar de pragas atávicas que sempre significaram para nossos ancestrais a fúria dos deuses. E é contra Deus que Cantor se revoltará.
Mas Roth é um grande escritor, e a revolta do jovem Cantor será teologicamente sofisticada, e não mero ateísmo militante, porque o ateísmo militante é sempre infantil.

O cruzamento entre as intenções pessoais e o destino, histórico ou cósmico, dá o efeito de esmagamento e negação de projeto moral, na medida em que os heróis de Roth não conseguem discernir qualquer sentido que não seja a cegueira terrível do acaso ou o "terror da contingência", tal como diz o narrador de "Nêmesis".
A expressão "terror da contingência" é comum nos textos do historiador das religiões Mircea Eliade para descrever o que nos moveria ao desejo religioso de um sentido maior. Tememos o acaso porque ele nega qualquer providência sábia por trás das coisas. O acaso é cego.

Para Cantor, Deus é um "demiurgo". Essa expressão era comum em alguns textos heréticos do início do cristianismo (textos gnósticos) e significava que Deus é mal. E se Deus for mal, não há qualquer esperança.
Mas o narrador do romance pensa diferente. Sua hipótese sobre a vida e as decisões que Cantor tomará é mais psicanalítica (ele sofreria de uma "neurose de responsabilidade"), mas nem por isso menos teológica. Para o narrador, Cantor é excessivo em julgar a si mesmo responsável pela desgraça que destrói seus alunos. E por isso sofrerá, porque nenhum homem pode se julgar senhor do destino, já que esse não nos pertence.

Como a deusa em questão é a da vingança, Nêmesis, a desmedida de Cantor em se julgar responsável pelo destino de seus alunos será vista de outra forma: Cantor se julga um justo e um dedicado professor e, por isso, pagará um preço alto pela autoimagem de homem reto. Aí está sua desmedida.
Cantor é o Jó de Roth (o judeu Levov, protagonista de "Pastoral Americana", é outro Jó de Roth): Cantor e Jó se julgam justos. Mas Cantor é um Jó que não encontra, ao final, a piedade de Deus, mas a vingança de uma deusa cega à misericórdia.

sábado, 7 de julho de 2012

PROUST AND HIS MOTHER-WOOD, Michael

  É conhecido o grande apego que Proust tinha por sua mãe, Jeanne. Recomendo a leitura de Proust and His Mother, publicado recentemente na London Review of Books (03/22/2012), onde Michael Wood aborda a complicada relação entre os dois, a partir de um episódio biográfico ficcionalizado por Proust em seu livro Jean Santeuil: numa exaltada briga com seus pais, na qual todos gritam - o que não era comum em sua casa - Marcel sai do recinto batendo a porta com tamanha violência que os vidros da mesma se espatifam. Não se sabe os motivos da briga, se seria seu homossexualismo, seu dispendioso estilo de vida ou sua relutância em trabalhar. Logo após o entrevero, Proust manda um bilhete para os pais pedindo desculpas, documento que se perdeu. Mas não a resposta da mãe, que traduzo do inglês: "Meu pequeno querido, sua carta me fez bem - seu pai e eu havíamos ficado com uma penosa impressão. Devo dizer-lhe que em nenhum momento pensei em falar qualquer coisa na presença de Jean (um empregado) e se isso aconteceu, foi absolutamente sem meu conhecimento. Não pensemos ou falemos mais sobre isso. O vidro quebrado será simplesmente o que é no templo - o símbolo de uma união indissolúvel. Seu pai lhe deseja boa noite e o beija ternamente. J. P. - PS - Tenho, entretanto, de voltar ao assunto para lhe recomendar não andar descalço na sala de jantar por causa do vidro."
As sutis incongruências do bilhete sintetizam a tensa ambiguidade da relação. Salta à vista a rica metáfora do vidro quebrado e suas múltiplas implicações, a começar por sua conotação incestuosa. Os vidros quebrados da porta são transformados no copo quebrado pelo noivo no casamento judaico, de rico simbolismo. A briga como eventual tentativa de ruptura e libertação de um vínculo excessivamente fechado é rapidamente transformado na reafirmação de uma "união indissolúvel". A cortante ironia do postscriptum, cheia de subentendidos, com a infantilizante recomendação para não ferir os pés, expressa a desaprovação aos estragos físicos e emocionais por ele provocados.
A morte de Jeanne deixa Proust inconsolável, preso a ideias obsessivas nas quais ora se acusa de ter precipitado o falecimento da mãe com as preocupações que a saúde dele lhe causavam, ora a censura por ter desertado de seu posto de enfermeira, abandonando-o, pobre criança incapacitada de sobreviver sem ela.
Em 1907, pouco mais de um ano da morte de Jeanne, um crime é comentado por todos em Paris. O jovem Henri van Blarenbergue, num acesso de loucura, mata sua mãe e se suicida em seguida. Proust escreve um longo artigo publicado na primeira página do Le Figaro, onde argumenta que, em última instância, é indiferente se queremos ou não matar nossas mães, pois terminamos por fazê-lo de uma maneira ou outra; Blarenbergue teria executado com um golpe só aquilo que a maioria dos homens realiza diluído em milhares de pequenos golpes: "No final, envelhecemos, matamos todos que amamos através das preocupações que lhe causamos, pela atabalhoada ternura que lhe inspiramos e os medos que sem cessar lhe provocamos." De forma sinuosa, Proust parece justificar Blarenbergue ao enfatizar "a atmosfera religiosa de beleza moral" na qual explode sua loucura sagrada, a mesma que a antiga Grécia reverenciava nos altares consagrados a Édipo e Orestes, em Colona e Esparta; o assassinato da mãe é simultaneamente corriqueiro e excessivamente monstruoso, não pode ser julgado por padrões habituais. Proust intui a necessidade de uma outra compreensão para explicá-lo, aquela que estava sendo produzida por Freud ao teorizar sobre outro crime desmesurado, o assassinato do pai, segundo e definitivo ato de um drama que se inicia com o mito de Narciso.
No artigo do Le Figaro. Proust reproduz, ligeiramente modificado, um parágrafo de Jean Santeuil, escrito anos antes. Com isso Wood sugere que a ideia de ser responsável pela morte da mãe, ou de matá-la, indício de conflitos inconscientes, acompanhava-o de longa data, razão de seu interesse pelo crime de Blarenbergue. Tal ideia já está presente, de forma indireta, na conhecida cena inicial de Em Busca do Tempo Perdido, em que o menino Marcel implora o beijo de boa-noite de sua mãe, que, tendo convidados em casa, não poderia demorar-se ao lado de seu leito infantil.
Os afetos contraditórios na relação entre mãe e filho apontados por Wood são comprovados em outros dados biográficos. Sabe-se, por exemplo, que Proust doou a mobília da mãe para o prostíbulo masculino que frequentava. É óbvio o objetivo ultrajante deste gesto. A agressão assume tons ainda mais extremados quando se lembra que Proust tinha o hábito de levar fotografias de suas amigas da alta sociedade para aquele local e pedir para que os prostitutos cuspissem nas mesmas. Entre essas fotos estavam as de sua mãe.
Há outro aspecto interessante no artigo de Wood. Ele o inicia discorrendo sobre o que chama de "loucura livresca", causada por textos cuja extravagância desconcerta o leitor, deixando-o na dúvida se o rejeita ou o endossa. Um bom exemplo seria a frase de Walter Benjamin em seu estudo sobre Proust, que diz: "Nenhum de nós tem tempo para viver os dramas reais que a vida nos destina. É isso que nos envelhece - isso e nada mais. As rugas e vincos em nossas faces são o registro das grandes paixões, vícios e entendimentos que nos visitaram: mas nós, os donos da casa, não estávamos lá para recebê-los."
A perplexidade de Wood é compreensível, pois o que quer mesmo dizer a altissonante frase de Benjamin? Que continuaríamos jovens para sempre se recebêssemos todas as paixões que nos procuram? Mas isso não é uma completa bobagem? Na melhor das hipóteses, seria uma licença poética, uma lamentação por termos de abdicar, em função das limitações impostas pela realidade, de muitas oportunidades vislumbradas no correr da vida. Ainda que fosse isso, a frase de Benjamin se afasta completamente do espírito da obra de Proust, que veicula o oposto, ao afirmar que não é a omissão ou a fuga das vivências o que nos envelhece e mata e sim a força afetiva destas experiências, o estarmos nelas engajados e envolvendo pessoas que nos são próximas, matéria-prima de nossas infindáveis recordações.
Passado o ofuscamento inicial provocado por seu brilho, a frase de Benjamin não resiste a um exame mais frio. Mas não seria sempre assim com a poesia, com a literatura? Claro que não. A sabedoria de um texto de Shakespeare não se altera quando ele despe sua opulenta roupagem linguística e exibe sua nudez conceitual.

sábado, 2 de junho de 2012

Livro: ZWEIG, Arnold. O Pensamento Vivo de Spinoza.

ZWEIG, Arnold. O Pensamento Vivo de Spinoza.São Paulo: Martins Editora, 1944
I O AMBIENTE
1) PIONEIRO DA HOLANDA
O menino Baruch Spinoza nasceu em Amsterdã numa época em que o pensamento livre se desenvolvia, arrojadamente, conquistando o mundo. Reinava ainda, na Inglaterra, Carlos I Stuart, mas já batia às suas portas, para logo depois assumir o poder, Oliver Cromwell. Os onze anos de governo republicano que se seguem, são contemporâneos de Spinoza
Essa época assinala um acontecimento inaudito na história. Um povo processa o seu próprio rei e depois o decapita, alegando inépcia do soberano nos destinos da administração do país[1].
Spinoza é então um jovem talmudista, contando apenas dezessete anos de idade. A República, entretanto, naufraga. Carlos II sobe ao trono inglês. Mas, o mundo não esquecera o cadafalso de Whitehall. A outra vizinha da Holanda, que determina o destino da época de Spinoza, a França monárquica, está, no entanto, nas mãos de dois grandes arquitetos políticos: o cardeal ministro Richelieu e o rei Luís XIV. É à sombra dessas duas poderosas personalidades que se desenvolve a vida de Spinoza. Porém, este não deixa, jamais, as fronteiras da sua pátria holandesa.
Primitivamente, os Países-Baixos eram constituídos por dezessete províncias que faziam parte integrante do império espanhol. A indústria, o comércio e a navegação converteram aqueles países em um dinâmico da Europa, geográfica e politicamente bem mais poderoso do que se poderia esperar da sua própria extensão, incluídas ainda a atual Bélgica.
A feroz intransigência com a qual o catolicismo intentava, também, reprimir, nos Países-Baixos, os movimentos protestantes de liberdade de consciência, só hoje se pode apreciar, devidamente, tendo-se em vista a intolerância selvagem do racismo hitleriano, que perseguiu e se esforçou em exterminar, na Alemanha e no mundo, a liberdade de espírito e o direito a uma crítica democrática.
Tal como acontece com o racismo de hoje, o governo espanhol ficava insensível aos prejuízos que aquele fato causava a si mesmo. No último quartel do século XVI, as sete províncias setentrionais dos Países-Baixos se desmembraram da Espanha para Utrech.
Compreendemos agora, conhecedores que somos do heroísmo espanhol contra o terror, da superioridade de forças e da ditadura, a luta que sustentaram os protestantes, durante oitenta anos, pela sua independência sem desfalecimentos, diante do sacrifício supremo das vítimas que tombavam para sempre.
Em verdade, foi através dessa coragem moral e física, com as quais o povo holandês soube manter a guerra contra aquela potência mundial, que a Holanda se vê hoje independente e livre. Desde então pôde prestar, à humanidade, serviços inestimáveis de valor histórico universal, tornando-se o refúgio de todos os perseguidos; ou melhor, a pátria do espírito progressista e que, por isso mesmo, aspira à liberdade[3].
Sua poesia e sua música atingem hoje as culminâncias da glória e nenhuma outra pintura subiu tão alto como as de Rembrandt, Franz Hals, Vermer Van Delfit. Os holandeses, conquistadores do mar, caldeados por este selvagem elemento e por sua tenacidade e amor à liberdade, vivem, no tempo de Guilherme de Orange e João de Witt a sua grande época. Eles criam a Companhia de Comércio das Índias Orientais. Desembarcam no continente americano [4] e fundam a Colônia da Nova AMSTERDAM, que hoje se chama NOVA YORK. Tomam posse do extremo sul da África e constroem a cidade do Cabo. O holandês Tasman contorna a Austrália e descobre a Nova Zelândia e a Tasmânia.
Os grandes almirante Tromp e De Ruyter não só aniquilam a frota espanhola, como também derrotam a inglesa.
Os Estados protestantes tão depressa são amigos da jovem República, como também lhe declaram guerra, enquanto a revolução puritana dá ao reino inglês um novo impulso, e um genial guerreiro, Oliver Cromwell, assume o poder na Grã–Bretanha, fixando um termo, quanto à expansão da Holanda. Esta retrocede ao segundo lugar na luta pela primazia marítima, pelo domínio dos mares. Resta-lhe, entretanto, bastante espaço ainda para dar amplitude às atividades e às riquezas de suas sete províncias.
A paz de Westfalia, pondo fim à guerra dos trinta anos cria, ao mesmo tempo, a Suíça livre e marca, em 1648, a derrota da Espanha. Mas, ainda agora, quando passa a ser a inimiga da França de Luís XIV, a jovem república encontra ainda a paz à sombra da Holanda. Batavos e os naturais da Frísia, educados em Roma e instruídos espiritualmente pelo cristianismo, incorporam-se para sempre à Reforma, à liberdade de pensamento e à luta do saber humano contra os privilégios feudais e a tutela escolástica.

2) A ADVERSÁRIA — ESPANHA

A maior adversária dos novos tempos se encarnava no Estado totalitário dos HABSBURGOS de Espanha e na Igreja espanhola. Sob esse império, o sol nunca se escondeu de Espanha. O afluxo de ouro, que lhe vinha das colônias americanas, duplicava sua importância na indústria, na agricultura e, mesmo, na própria metrópole. A sua infantaria, a melhor do mundo, permitia, no entanto, que se tivesse uma impressão falsa do seu justo valor, pois não se levava em conta a força de movimento que aí era representada, através de tendências e influências estrangeiras.
A população da península ibérica era a mais misturada da Europa. Sobre a base primitiva, construída pela raça antiga dos iberos, cujos traços atuais são os vascos, instala-se após as guerras púnicas, a imigração militar dos romanos depois de a Espanha ser arrancada das mãos dos fenícios que durante um milênio, se incorporaram à grande civilização semítica da bacia do Mediterrâneo.
Uma fina camada da nobreza gótico-ocidental e vandálica desarticula os romanos. Estes porém, como é sabido, através de seus impérios, são vencidos pelos árabes e mouros unidos, que se achavam, por sua vez, misturados, há muito tempo, com os judeus, desde quando vieram, reunidos, da Arábia, com numerosas estirpes judaicas do norte da África.
Por alguns séculos, a civilização da península ibérica tornou-se de novo, árabe e judia, ou melhor, semítica, constituindo a mais elevada e avançada cultura da Europa, através do amor à ciência e às artes, do seu vínculo à filosofia antiga, à antigüidade clássica, à medicina e sua técnica, ao comércio e às finanças.
A transigência nos domínios da fé era exemplar, ampla, modelar. Assim se manteve, até o fim, em todo o território mouro do país. Mas, o Islam, recalcado por todos os lados, sobretudo pelo período mais conhecido das Cruzadas, com o domínio das monarquias cristãs, estendeu-se, progressivamente, do noroeste da península até o seu extremo meridional.
E, quanto mais católica era a Europa, tanto mais intransigente e intolerante se mostrava. Como a nobreza conquistadora precisava de um meio para despojar e afastar do país, até mesmo estes que, judeus e árabes de nascimento, haviam já abraçado o catolicismo, imaginou o princípio da pureza do sangue, servindo-se para isso de um instrumento: o Tribunal da Santa Inquisição[5].
Por esse meio, não foi fácil manter-se uma luta secular entre poderosos e humildes e expulsar da pátria espanhola os judeus, os mouriscos e os cristãos novos(marranos)[6].
Com eles, abandonaram o país a liberdade espiritual, a vontade de pensar, a atividade econômica, artes e ciências, ficando depois a nação que foi livre, escravizada, durante séculos, à exploração econômica de italianos e alemães. Teve isto lugar no fim do século XV, época em que o velho império cristão de Bizâncio passava para as mãos dos turcos, e Cristóvão Colombo, financiado e acompanhado de judeus, para não dizer, mesmo, que ele, Colombo, tinha procedência judaica (veja-se Blasco Ibanez)[7], arriscava-se, audaciosamente, pelo caminho ocidental das índias, descobrindo, por acaso, a América.
Alguns milhares de famílias judias deixaram, então, cheios de preocupações dolorosas e de melancolia, a península ibérica procurando, inquietas, outras grandes cidades marítimas: Livorno, Salônica, Hamburgo e Amsterdam. Nestes lugares, os recém-vindos formaram, desde logo, uma frente antiespanhola, sobretudo nos países que já haviam pertencido à Espanha. Contudo, sob o ponto de vista cultural, continuaram aristocratas e burgueses hispano-hebreus.
A maneira de pensar já se achava determinada pelo mesmo desejo fervente de uma estrita ortodoxia, que a Igreja Católica exaltara na Espanha. Temiam e odiavam a dúvida, o cepticismo e a heresia, tanto quanto os seus antigos companheiros cristãos. Entretanto o espírito livre que arejava a Europa ameaçava dissolver a comunidade dos judeus.
Mas, como esta, no curso de três gerações, havia sofrido terrivelmente, por causa da sua origem, revestia-se agora, como nunca, da fé judaica e do ardor messiânico de Israel e por isso sentindo-se forte, acreditava que coisa alguma neste mundo poderia diminuir ou afetar a sua força.
Destarte, continuaram a luta que haviam começado na Espanha contra a inteligência crítica e a investigação livre. Esta maneira de proceder era talvez a herança que lhe ficara de uma época remota de liberdade e mesmo de felicidade. Dentre as famílias, que foram, assim, transplantadas de Portugal e da Espanha para a cidade de Amsterdam e que traziam no sangue a semente do pensamento, estava a de D’Espinoza, ou de Espinoza, em cujos antepassados se contam alguns soldados e alguns cardeais.

3) O SOPRO DO ESPÍRITO

O poder do espírito agitava, agora, poderosamente, a atmosfera européia. O impulso vinha do humanismo, resultante daquele Renascimento italiano que havia destruído o homem medieval para dar à luz, por assim dizer, o homem moderno. Navegantes espanhóis, que deram a volta ao mundo, demonstravam a redondeza da terra, contribuindo assim para colocar a imagem do Universo de Copérnico no lugar do sistema de Ptolomeu.
O escritor político florentino Niccoló Machiavelli já havia escrito, com um realismo grandioso, a natureza do homem, do poder, do Estado e das forças sociais, apresentando assim uma visão panorâmica da política, tal qual era no seu tempo. O monge Martinho Lutero tinha estabelecido a soma de todos os descontentamentos que, durante séculos, suscitara a Igreja, e à hierarquia opôs o princípio das relações diretas com Deus, apoiados sobre a Bíblia e sobre uma comunidade religiosa livre… até que a traiu em favor de pequenos príncipes.
Mas, apesar disso, nos países que haviam seguido Lutero e o seu protestantismo, foi possível, desde então, a liberdade e a investigação espiritual, em lugar da intolerância religiosa. Por outro lado, os efeitos explosivos do pensamento sacudiram todos os edifícios ideológicos, erigidos, segundo certos princípios autoritários.
O antigo monge Giordano Bruno, que emigrara por amor à verdade e à investigação, negava, por sua vez, qualquer autoridade, ensinando o caráter infinito e perene do universo que anima um instinto universal e eterno da evolução, substituindo a religião cristã por uma religião natural, procurando demonstrar, com isso, que todas as religiões não passam de uma mistura de símbolos e ideias supersticiosas.
Quando em 1600, preso e sem defesa, se viu ante o dilema de negar as suas teorias e ser salvo, preferiu confirmá-las e ser queimado vivo, em Roma, como um herético ou um marrano, mas afirmando, através da sua morte voluntária, a grandeza do pensamento humano. À figura de Giordano Bruno pode-se opor a personalidade de Francisco Bacon, que traiu a um amigo e praticou a venalidade, morrendo em 1626 como lorde-chanceler, mas que, apesar de tudo, prestou ao progresso do entendimento tantos serviços quanto os de Bruno.
Ao introduzir a experimentação nos domínios das ciências naturais, alicerçando-a sobre o conhecimento, só considerou legítimas as conclusões daí decorrentes. Submetendo, por outro lado, as reflexões do homem à autocrítica, mostrou que ele tem aí inúmeras causas de erros. A Francisco Bacon e seu compatriota Hobbes, que morreu em 1677, seguiu-se a geração dos pensadores e cientistas modernos, todos contemporâneos de Spinoza. Assim, em 1642 morria o italiano Galileu, em 1645 o holandês Grócio, em 1650 o francês Descartes. Em 1643, nascia o inglês Newton, em 1646 o alemão Leibnitz. Dentre eles, Galileu fundou a astronomia moderna, Grócio o direito dos povos, Descartes a filosofia, Newton a física com todas as suas irradiações e Leibnitz a matemática superior e a construção dum universo todo feito mônadas, cuja última expressão aliás, poderia ser denominada hoje, com segurança, íons.
No mesmo ano que Spinoza, em 1632, nascia o holandês Loenwenhoeek que foi o primeiro a observar ao microscópio o mundo dos infinitamente pequenos, preparando, com a sua descoberta, a biologia moderna. Assim, no ponto de união de duas épocas, observamos o mundo em que viveu Spinoza, apenas projetado da sombra de ontem para a luz de hoje, mas para a luz de um hoje eterno.

II O PERSONAGEM

1) OS ANOS DECISIVOS

Os poetas sabem, e Sigmund Freud confirmou de uma maneira grandiosa, o de que Rudyard Kipling se utilizou como epígrafe de sua última obra: "Dá-me os sete primeiros anos de uma criança e fica-te com o resto"[8].
O jovem Baruch Spinoza cresceu no bairro judeu de Amsterdam, que deve a sua fisionomia àquela gente chegada de Espanha e de Portugal.
No centro de umas ruas, nas quais habitam pessoas de olhos escuros e que falam uma língua muito próxima do idioma espanhol, fica situada a casa de Miguel de Spinoza, comerciante conceituado e que desfruta de excelentes relações no mundo que o cerca. É um pai amável e carinhoso. Um homem de prestígio, A ele foram confiados, pela comunidade, altos cargos honoríficos.
A sua religião é liberal, ampla, sem nenhum constrangimento espiritual. Reconhece desde logo os altos dotes do filho Baruch e por isso lhe faculta os melhores professores, que ministram ao aluno um vasto ensinamento, colhido nas fontes do judaísmo. Essa educação espiritual só se torna fecunda, porém, depois do aperfeiçoamento da estrutura humana que a precede. A vontade de uma criança poderá ser quebrada pelos golpes rígidos dos educadores?
Será o mundo exterior atraente, ou hostil ao ser humano que o engrandece? Poderá o filho se modelar tendo em vista a figura do pai, ou deve se rebelar contra ele?[9]
Disto é que vai depender a maneira pela qual Spinoza terá mais tarde de elaborar toda a sua sabedoria. A criança vê que a morte ronda a pessoa do progenitor, porque este, vendo desaparecer os entes a quem mais amava, a quem estava também mais intimamente ligado, já não tem a mesma força. Estas pessoas queridas, que viviam na sua intimidade, eram as mulheres que ele havia perdido. Quando o pequeno Baruch descobre o mundo exterior, encontra-se com uma irmã mais velha, Rebeca, à qual se une com verdadeira ternura filial. A mãe de Rebeca era a primeira mulher do pai de Spinoza e já havia morrido. Mas, Baruch, apesar dos cuidados da irmã, tinha ainda a mãe viva. Cresce sob a proteção desta, mas a perde, quando vai completar seis anos de idade.
Depois de decorrido algum tempo, o pai se casa com a terceira mulher. Mas, Baruch não precisa esperar para ver o desenlace daquela infelicidade paterna. A tristeza de um homem, a quem a morte lhe leva as próprias companheiras e que também tem de sobreviver aos próprios filhos, já se havia impregnado na alma, profundamente. Quando o pai morre, tem Baruch pouco mais de vinte anos, mas já estão no cemitério quatro das suas irmãs.
A íntima relação do menino Spinoza com sua mãe que, faz algum tempo, repousa, no cemitério de Ouwerkerke, morta entre os mortos, e à qual pede o filho as bênçãos maternas, como se ela estivesse viva, explica-se. Esta ligação constante com sua mãe nós a deduzimos de um fato particular. Assim, no momento em que se viu obrigado a deixar a casa paterna e também o seu bairro judeu, Spinoza vai morar bem em frente ao cemitério de Ouwerkerke.
É desse momento em diante que ele se desvia do mundo paterno. Dois traços de caráter constituem os brasões, por assim dizer, do pai de Spinoza: a religiosidade do judeu e o sentido do lucro, próprio ao negociante. Contra essas duas tendências se rebela o filho, à sua maneira, reprimindo ambas, não com ardor revolucionário, senão através de uma serenidade que se poderia dizer feminina, resoluta.
Sente-se cada vez mais em oposição ao mundo do judaísmo pela força do pensamento em seu cérebro. O mundo dos interesses comerciais e do lucro, não o empolga. Vive, durante toda a sua existência às expensas de particulares, que lhe facultam os meios pecuniários e de pensões recebidas do próprio governo do país. Mas, apesar disso, consegue pequenas somas de dinheiro, polindo vidros de ótica, que era, aliás, uma das suas ocupações prediletas.
Sabe-se que Spinoza não deixava de prestar certa atenção ao lado econômico da vida, porém sem nenhum resultado para ele. Quando rapaz, foi cobrar uma conta que certa senhora contraíra com o pai. Pois bem. Apesar de jovem, e de certas ironias, feitas no momento, pela devedora, Spinoza conta o dinheiro recebido e nota a falta de dois ducados. Sabe-se ainda que certa vez entrara também em conflito com um seu cunhado, por causa de uma herança, valendo-se do seu direito e recebendo a parte testamentária que lhe cabia (apenas uma cama e uma cortina). Não lhe era simpático o cunhado, porque este perdera a mulher de um aborto. Ela se chamava Míriam, a quem Spinoza, como irmão, dedicava muita amizade.
Esse matrimônio, no entanto, constituíra para a mulher uma feliz união e o teria sido ainda por muito tempo. Mas, em 1850, o médico I. P. Semmelweis descobre a causa daquela "fatalidade" nas unhas sujas das parteiras e dos parteiros que já entravam assim, com a morte, nos quartos das criaturas que iam ser mães. Outra experiência juvenil corta-lhe o caminho da bravata, do ataque revolucionário da rebeldia, tão comuns na mocidade.
Tinha sete anos apenas quando se cumpre na comunidade de Amsterdam o terrivel destino de Gabriel ou Uriel da Gosta, nobre neocristão português que, não conseguindo viver tranqüilo na casa paterna e cristã, em Lisboa, fugira com sua mãe e irmãs para "voltar" ao judaísmo. E, como a força do pensamento e da crítica não cessassem de atuar no seu espirito, levando as suas dúvidas e incertezas, na procura da liberdade, até mesmo dentro dos princípios do judaísmo, deu fim a própria vida com um tiro de pistola, depois de haver recebido os 39 golpes que os açoites fazem vibrar na carne dos penitentes, pecadores e arrependidos, e conforme o rito, depois de deixar o corpo nos umbrais da sinagoga, para ser pisado pelos pés dos que quisessem passar-lhe em cima, mas confirmando, por esse meio, todos os seus escritos e todos os seus pensamentos.
Onde estava o seu crime?
Ele buscava a certeza de Deus, porém os judeus espanhóis eram tão rígidos e crentes como os cristãos espanhóis… Na Holanda se humanizaram. Spinoza se apercebeu disto um dia. Mas, por outro lado, não deixou de adotar, como lema de todos os seus escritos, a divisa "CAUTO" (sê previdente) debaixo de uma rosa, marcando, assim, sub-rosa, o sinal do silêncio, quando escrevia.

2) RESIGNAÇÕES E RENÚNCIAS

As experiências domésticas de Spinoza foram completadas por outras, fora de casa. Estas experiências teriam sido, talvez, contraditórias. Mas, o destino, que o espreitava, reservou-lhe uma linha de conduta maravilhosa e de perfeita unidade na sua prodigiosa inteligência, o que ele agora procura fora, a doutrina e a ciência temporal, só poderá ser atingido através do conhecimento do latim.
Assim, depois de um curto preparo, ministrado por um professor alemão, ele se torna discípulo do melhor latinista da cidade, Franciskus van den Ende.
Este homem é o seu pólo oposto. Católico de nascimento, frade na juventude, dotado de uma alma impetuosa, passa da ordem dos agostinhos para a dos jesuítas que pretendem com as armas da disciplina, voltar a conquistar a vida para o catolicismo, impregnando-a de religiosidade.
Mas, as tendências da época penetram profundamente no espírito de van den Ende e, por isso, ele já não pode aceitar, tranqüilamente, o universo ideado pelos jesuítas.
O sentimento panteísta, a aspiração de uma alma para o mundo, o agita, e o transporta de Leyden a Amsterdam, onde, com a sua numerosa família, se firma como, professor de latim. Dos jesuítas, lhe ficou o gosto pelo teatro. O que ele consegue fazer representar, porém, não vai além das comédias de Terêncio, através das quais passa um sopro de paganismo e de verdadeira antigüidade. Nada de extraordinário haveria, se esse mestre de latim não conseguisse aclimar-se numa cidade religiosamente calvinista, quanto Amsterdam.
Já idoso emigrou, então, para Paris, Ai instalou-se como médico, mas sem resultado. A França de Luís XIV não pode dar a aplicação a nenhuma de suas faculdades. Eterno rebelde, vê-se finalmente, envolvido, dois anos depois da morte do seu discípulo Spinoza, numa rebelião da nobreza, acabando na forca. Na casa do mestre, seus alunos descobriram, depois de haver aprendido a língua do pensamento clássico e da erudição contemporânea, a ação de Giordano Bruno, a influência de Hobbes e o conhecimento dos maiores pensadores do tempo, como René Descartes. Entretanto, uma outra experiência, mais importante ainda, sofre o espírito de Spinoza. Ele, agora, tenta conquistar o amor de uma mulher.
É nesse tempo, muito jovem ainda, um homem alto, face amorenada, bem vestido, risonho, mas tímido por natureza. Clara Maria, a filha de van den Ende, franzina, mas dotada de certo vigor intelectual, auxilia o pai, quando ele leciona. É contudo uma menina de onze ou doze anos. Dá, porém, a impressão de uma sensível maturidade espiritual. Mas é preciso ser assim e também ser criança para iluminar a alma sombria de Spinoza, que não tolera o mundo dos adultos.
Já em idade avançada, informa um amigo, Spinoza fala dela com uma grande afeição e a teria desposado, se Clara Maria não se mostrasse inclinada a gostar de um outro condiscípulo mais amável do que ele. Este, alemão de origem, fazendo-se médico, conformado, conhecedor do mundo, leva a moça para a sua cidade natal, Hamburgo, subtraindo-a, desse modo, do convívio de Spinoza. O casamento, entretanto, não é feliz e o casal começa a viver em graves desavenças. Spinoza retira agora da vida exterior uma grande parte das suas forças morais e humanas. Espiritualiza-se! Segue por um outro caminho, por uma outra possibilidade, por uma outra paixão. Contudo, o homem de carne e osso, que é Spinoza, há de se manter sempre intacto e jovial.
Como uma criança, diverte-se em prender aranhas entre os fios que elas tecem, ou então em pegar moscas para jogá-las dentro da rede das aranhas. Prevalece-se ainda do seu talento de desenhista para se retratar a si mesmo, semelhante a Masaniello, traindo assim o sonho da sua imaginação, ou seja o de se evadir da sua revolta secreta e do seu silêncio prudente para se arrojar na ação aberta e apaixonada de Masaniello[10] que, embora humilde pescador, revoltou o povo de sua pátria, Nápoles, contra o vice–rei espanhol, inimigo comum, sucumbindo, por isso, tragicamente.
Mais tarde, quando Spinoza já havia trocado o seu prenome, Baruch, por um outro, latino, Benedictus, e já se havia tambem acostumado a viver na miséria, passou a se apresentar mal vestido, entre gente pobre, simples e sem pretensões, como os seus míseros companheiros, fumando o seu cachimbo e conversando, de vez em quando, para distrair o espírito, sempre retraído e voltado para o silêncio.
Reside num quarto que apenas se distingue dos demais, porque nele existe uma porção de livros. Uma só vez tenta enfrentar o mundo exterior, protestando contra a barbárie e a violência, assassina e desalmada. Isto acontece quando ele já se encontra em Haia, no verão de 1672. Bandos armados do partido de Orange assassinam os irmãos de Witt, sendo João, o irmão mais velho, dignitário, patrício, amigo do espírito e das ciências, um dos políticos mais famosos do mundo daquele tempo.
Para exprimir o seu protesto, indignado contra o degolamento desse grande homem inocente e bom, escreve Spinoza as palavras "ultimi barbaroram" (o último em barbárie) numa folha de papel que pretende pregar na parede de um muro da cidade, durante a noite, próximo ao local do crime. Alguém o impede, porém, de levar a efeito aquele intento. E o filósofo chora, abafando, assim, o seu arrebatamento. Spinoza não sai mais à rua. Seu aspecto é agora, marcadamente, o de um judeu aristocrata. Sua figura é delgada, de membros delicados. A cabeça é ampla, a face é magra, o nariz um pouco curvado, as sobrancelhas arqueadas, a boca rasgada num largo traço, mas o lábio inferior é proeminente. A fronte é alta. Os olhos, uns olhos muito negros e grandes, têm um brilho melancólico.
Em geral, Spinoza é apresentado com os cabelos anelados, à maneira dos grandes pregadores. O modo de vestir-se de preto, com um peito de camisa branca, parece sublinhar em verdade, o seu aspecto eclesiástico. Mas existe também um retrato da juventude que nos dá a impressão de um magnata da Espanha, altivo e cheio de nobreza, de cabelos curtos e pequeno bigode, semelhante a esse colar de barba dos marinheiros, que vai de uma orelha a outra, deixando livres a parte superior do mento e das bochechas.
Infelizmente a autenticidade do retrato é duvidosa. Contudo, representa a fisionomia de alguém mais individualizado, que os retratos autênticos dos pregadores, com os seus cachos bem tratados. Por isso, a figura em apreço, pela sua singularidade, deve corresponder melhor à origem de Spinoza e de sua obra.
No caráter dos pregadores há a expressão daquilo que lhe é inerente: o dogmático, bem como o traço teológico e uma certa secura no raciocínio, na abstração e na prosa, que podem vir, contudo, dos intérpretes; porque, tal acontece com os pregadores, eles escrevem unicamente em latim.

3) RUPTURA COM A TRADIÇÃO

Todo grande homem rompe, por vontade ou não, a corrente que o prendeu, enquanto foi fraco e vulnerável. É como um segundo nascimento, necessário para lhe dar a independência, a força, a coragem, a afirmação da própria personalidade. Em alguns homens geniais, este segundo nascimento só é expresso quando eles trocam de lugar. Assim, por exemplo Goethe, quando se muda de Francfurt para Weimar ou viaja de Weimar para a Itália, ou Bonaparte quando é enviado da Córsega ao continente. Entre muitos outros, este renascimento se processa à maneira das erupções. Em Spinoza, o silencioso, o suave Spinoza, esse segundo nascimento é anunciado pelas trombetas, pelo patético arder de negros círios, pela claridade dos textos e do espírito do Velho Testamento.
Se apenas existissem no mundo comunidades judaicas ortodoxas, esta predestinação significaria, verdadeiramente, alguma coisa, ainda que só servisse para se passar a vida cantando, com a liberdade dos pássaros, mas curtindo fome.
Em torno da comunidade portuguesa de Amsterdã encontrava-se a cidade cristã, com a sua fisionomia própria e tradicional e, um pouco distante desta, algumas outras localidades nas quais as autoridades de Amsterdam não podiam intervir. Em julho de 1656, dois anos depois da morte do pai, e um dia depois da declaração da falência de Rembrandt, recai sobre Spinoza a excomunhão. Antes, porém, procuram ouvir as suas opiniões sobre a existência de Deus e o que ele pensa do caráter obrigatório do judaísmo ortodoxo.
Depois querem informações a respeito das suas conversações com os rabinos, que lhe eram, ou haviam sido afetos e como e porquê se considera judeu praticamente, sem fé, por um soldo anual de mil gulden, da mesma forma com que os judeus na Espanha haviam praticado também sem fé o cristianismo. É somente após a ruína de sua casa paterna e de se esgotarem todos os seus esforços que Spinoza rompe com aqueles princípios.
Mas, apesar disso, se sente profundamente ligado à sua origem e à sua educação judaicas e, assim, nunca teria voltado as costas ao judaísmo se essa comunidade, sempre ameaçada, o deixasse pensar livremente e consentisse que ele, por sua conta e risco, dirigisse a sua própria vida. Nunca cessou, no entanto, de se interessar pelo idioma hebraico, indo até mesmo às suas filigranas gramaticais, como se pode observar, aliás, na própria obra.
Destarte, afirmam certos conhecedores da filosofia, que, parte do seu pensamento só se torna clara quando se convertem alguns vocábulos latinos em termos hebraicos, de que procedem. Mas, a significação do judaísmo está na observação de infinitas orações e preceitos que regulam o dia, a semana e o ano e que um espírito independente e livre não pode praticar, uma vez que tudo isto se lhe apresente vazio de sentido. Assim também lhe é impossível tomar a sério um calendário do velho ano lunar semita e fechar suas cartas no ano de 5420 da criação do mundo, porque este mundo já existia antes disto, há vários milhões de anos. Contudo, o universo espiritual do judaísmo tinha sua significação, tal como Spinoza o percebia, árvore possante, cheia de seiva, cujas raízes se projetam ainda até os tempos presentes, fora das escolas jesuíticas, da filosofia tomista, ou das concepções canônicas, como um vegetal gigante e sagrado da ciência antiga, que já floresceu, luxuriosamente, em Menfis e ou Siracusa e Atenas, Antióquia e Alexandria, Jerusalém e Pumbedita.
O pensamento e o saber que aí se aprendem são antigos, a ideia do mundo é judaica e os métodos de compreensão dialética procedem daquela grande época em que a humanidade, aprendeu a deduzir logicamente, reconhecendo causas e efeitos como princípio da investigação, em lugar dá analogia e da sinopse. No mesmo plano, move-se o objeto do conhecimento. Os livros sagrados do Velho Testamento são completados e interpretados pelo ensinamento oral e seu natural prolongamento: os textos rabínicos.
Nisto se reconhece a necessidade de se enriquecer o fundamento do judaísmo com a filosofia contemporânea: afluências platônicas e aristotélicas são admitidas e insertas na rede de canais talmúdica. Por outro lado, o pensamento hispano-judeu não se privou jamais das fontes frescas da sabedoria. Foi com este saber e com esta formação que Spinoza resolveu olhar as coisas de maneira imediata e iluminar os textos, inclusive os mais sagrados, com a luz da razão, abrindo assim, um caminho que se some na essência de Deus e do mundo, através das camadas espessas das opiniões[11].
Quando foi excomungado teve como companheiro João de Prado, que mereceu a mesma sorte porque ofendeu a Deus, comparando-o com a natureza. Aí está um pensamento spinozista, expresso talvez com menor precaução, mas que nem por isso deixaria de ser a coisa mais natural deste mundo, aprendida pelo jovem Spinoza da própria antiguidade[12].
Permaneceu, entretanto, sendo ele mesmo. É também um traço muito judaico, no seu radicalismo, a maneira silenciosa e inexorável com que se desviou do judaísmo. Depois de um golpe de adaga, ensaiado por um "vingador de Israel" e da excomunhão lançada em sua ausência, Spinoza só procura agora o ambiente formado por sábios cristãos e pelos heréticos holandeses chamados Rhijnsburger ou Colegiantes, considerados com desconfiança pela Igreja oficial Calvinista, mesmo antes de estar em condições de persegui-los.

4) A VIDA TRANQÜILA DO CAMPO

A história da dissidência cristã é tão antiga quanto a história da própria Igreja. Por outro lado, a oposição entre a Santa Madre Igreja e os dissidentes, sempre foi violenta. Os sectários não querem renunciar à vida real, quotidiana, servindo-se apenas dos princípios do Cristianismo. Assim surgiram no catolicismo as ordens de monjas e de frades. Dentro dó protestantismo apareceram a revolta camponesa e o movimento do anabatismo. Estes movimentos foram, ambos, exterminados com sangue (caso Uriel da Costa).
Martinho Lutero, o novo papa, aviva o fogo da destruição. A partir de então os sectários se tornam pietistas, voltando-se para a introspecção, consagrando-se à contemplação, à interpretação da Escritura, segundo a própria maneira de ver. Assim procede, por sua vez, Spinoza. O conflito com o mundo exterior se estabelece sem ruído. Os que assim agem não deixam campo aberto aos seus adversários. Contentam-se com um mínimo de vida exterior e suprimem, por isso, os pontos vulneráveis do ataque.
A gente tranquila do campo é do mesmo nível econômico de Spinoza. O camponês fica satisfeito com um mínimo de recursos materiais. Assim, os artesãos, os pequenos lojistas, etc. Destarte, também, Spinoza, como ficou dito, vive polindo lentes e percebendo modestas pensões, que lhe dão os amigos (alguns o fazem por testamentos). Só mais tarde recebe a proteção magnânima, dispensada pelo regente de Witt[13], de quem é amigo.
Os Rhijnsburger se adaptam perfeitamente à paisagem holandesa, estendida na relva, sob um céu muito claro, cortada de numerosos canais, por onde passam as águas generosas.
Do mesmo modo, Spinoza entra em perfeito acordo com essa natureza, na maneira suave com que sabe combater os seus acessos de tosse, procurando, nas essências das rosas, o remédio eficaz.
É na paisagem que ele aprimora a acuidade da sua visão intelectual e robustece o seu raciocínio. Externamente, porém, não se distingue dos demais. Participa das alegrias e tristezas dos outros, embora o seu espírito seja reservado e corresponda apenas ao eco do próprio silêncio, que lhe é inerente, e a calma que lhe vem da Baixa-Alemanha.
Nos seus últimos anos, Spinoza satisfaz o espírito com o ambiente que o cerca. Faz considerações sobre a prece, consoladora evocação que assinala a vida tranquila de além-túmulo; adverte as crianças cujas cabecinhas louras denunciam as casas dos pais, enquanto tira, do seu cachimbo, longas fumaradas, sentado à porta da sua habitação na paz da tarde.
Não foi Spinoza um homem viajado, como em geral se diz. Durante cinco anos reside em Ouwerkerke. Em 1660 passa para o feudo dos Rhijnsburger, no subúrbio de Rhijnsburg, vizinho da cidade universitária de Leyden. Três anos mais tarde muda-se para o povoado de Voorburg, próximo à capital de Haia e daí para a própria Haia, talvez por querer se aproximar de João de Witt.
Na formosa cidade, que conta numerosos parques e fontes magníficas, vive, primeiro, em Veerkay, na casa de uma valente mulher que, quando moça, conseguiu livrar da prisão o grande jurista Grócio. Mais tarde, Spínoza foi morar com o pintor decorador Van der Spijck, em Pavil-joensgrache, do qual possuímos, hoje, o melhor retrato do filósofo, que conta então, por essa época, trinta e nove anos.
O quarto, dividido por paredes de madeira que ele ocupa, com um teto de tábuas frágeis, e um pequeno espelho junto a uma janela, vai-lhe servir de câmara mortuária. A sua saúde começa a declinar. A tuberculose ou tísica, como se chamava em linguagem expressiva da época, não fazia parte, ao que parece, da sua herança. Vivendo em condições miseráveis e anti-higiênicas, não lhe é difícil respirar a poeira dos velhos livros, como aconteceu a Mozart, ou Schiller.
Assim, chega apenas aos quarenta e cinco anos de idade. No jardim da casa de Spinoza, em Haia, como também em outros lugares da Holanda, encontramos o busto de Spinoza. Porém, a sua vida verdadeira, a que não se acha ameaçada de morte, não tem lugar senão no mundo do pensamento e na solidariedade espiritual dos homens.
Já em vida, a correspondência e o círculo de relações que mantinha, formavam-lhe a aura propícia à sua grandiosa figura. São de suas relações homens como Hüygens, Leibnitz, Henrique Oldenburg, secretário da Royal Society Of Sciences, e João de Witt. O grande conde quer persuadi-lo de que deve dedicar um livro a Luís XIV, que lhe proporcionaria um vencimento anual bem apreciável. Mas, Spinoza recusa delicadamente, como também recusa o convite para ir a Heidelberg, que de maneira muito honrosa lhe fizera o conde Carlos Luís.
Uma boa palestra com amigos, de vez em quando, uma página de carta que escreve, um livro resumido, que manuseia, eis aí talvez as únicas coisas sobre as quais descansa o espírito de Spinoza. Pensar, ler, escrever, corrigir o que escreveu. Com isto ele enche o seu dia habitual. Para tanto, não precisa mais de quatro idiomas, que lhe são familiares: espanhol, holandês, hebraico e latim. Nas horas de pura filosofia, só este último.
Seus escritos capitais, especialmente a ÉTICA, não são manuseados, senão por amigos íntimos e de absoluta confiança. Só uma obra é publicada e divulgada com o seu nome, bem como uma outra que a propaga anonimamente. Mesmo assim tem com elas bastante aborrecimentos.
No TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO consigna a sua profissão de fé e mostra uma grandiosa visão no tocante ao Estado e à Liberdade. Porque é Spinoza, como o seu amigo Witt, inimigo de toda ortodoxia e de todo absolutismo; ou, numa palavra, republicano esclarecido e democrata ilustrado.
Sem valorizar em demasia as massas, na sua situação atual, luta, com a mais íntima convicção, para lhe assegurar, no mais alto grau, o seu desenvolvimento, desoprimíndo-a, o mais possível, do peso da tutela. Por causa disto, sofreu insultos selvagens, cem anos depois da sua morte.
Só nós os homens de hoje, podemos medir o que, em verdade, significou, durante esses cem anos, a palavra spinozista. Podemos traduzi-la agora por bolchevista. A essa palavra se atribuía uma audácia criminosa e sem limites, o desejo de rebaixar e de destruir tudo que era considerado sagrado, inclusive o ateísmo, e a hipocrisia.
Bastava que alguém tentasse se defender da acusação de "spinozista" para se ver em maus lençóis. Entretanto, em suas épocas, homens como Freud e Einstein tiveram, corajosamente, a ventura dolorosa de chamar à sua responsabilidade, todo o atrevimento de um pensamento que abrindo, embora, caminhos novos para o futuro, custaram, a cada um deles, uma soma incrível de sacrifícios cruamente curtidos, através do furor, da calúnia, das perseguições, da cólera e mesmo do ridículo.
Os ataques mais veementes contra Spinoza partem, principalmente, dos padres alemães. Não é necessário citar-se as suas expressões, porque o vocabulário, de que se utilizam, se assemelha, em vulgaridade, ao dos nazistas de 39; também, de igual modo, contra todos os que não aceitam os seus princípios. Semelhante à época que se tornou selvagem, depois da guerra de 1914, aquele tempo o foi, também em consequência da guerra dos trinta anos.
Os padres holandeses não se furtaram, |por sua vez, de atacar Spinoza que, senhor de uma alma sensível e solitária, necessitava, para suportá-los, menos da palavra, que da calma, conquistada pela própria força filosófica. Essa força nunca lhe faltou, assim, nos momentos adversos. Spinoza era, ao mesmo tempo, o mais sereno e o mais inabalável espírito entre os seus pares.
Por tudo isso, o "TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO" havia de alcançar um grande êxito: foi incluído no Index da Igreja Católica, proibido em 1671 pela Igreja Oficial Calvinista da Holanda e, em 1674, pelos Estados Gerais; mas, apesar disso, (e talvez só por isso) era avidamente procurado e lido. Várias edições se sucederam, sob falsos títulos, apresentadas algumas vezes em tratados de medicina, outras vezes em obras históricas.
Alguns panfletos são ainda publicados contra Spinoza e, no último ano de sua vida, ele interrompe a redação do seu novo "Tratado político" para enriquecer a nova edição do "Tratado teológico-político", com alguns esclarecimentos oportunos. Mas a morte retira-lhe, dolorosamente, a pena das mãos. Mal começa a se aperceber da sua enfermidade, e esta em marcha rápida[14] o leva deste mundo.
Morre em um domingo. É o dia 21 de. fevereiro de 1677. Tem, à cabeceira, o seu médico e amigo Lodewijk Meyer. Baixa à sepultura, no dia 25, na Nova Igreja de Spuy, embora nunca houvesse se convertido ao Cristianismo. Ao contrário de Schiller e Mozart, cujos funerais não tiveram acompanhamento, o seu, apesar do mau tempo, que então reinava, é assistido por alguns homens ilustres e seis carruagens seguem-lhe o féretro.
É destino do homem de gênio ser distinguido e esquecido das multidões; mas, em compensação, ele pode contar, sem reservas, com um pequeno grupo que lhe percebe, em vida, o sopro e a grandeza do seu espírito, garantindo-lhe, assim, a posteridade. No ano da morte de Spinoza, publica o seu editor de Amsterdã um tomo das obras póstumas, em que se inclui principalmente a ÉTICA mas que é proibido de circular, no ano seguinte. Contudo, é em vão que as forças reacionárias se esforçam para destruir o morto. Spinoza voltou a brilhar quando chegou o momento. Cem anos depois a Europa alcança a época que havia sido precedida por aquele gênio. E somados mais outros cem anos erige-se-lhe um monumento em Haia. Não se pode exigir mais, quando se trata de um autêntico gênio.

III A FISIONOMIA ESPIRITUAL

1) O TRAÇO FUNDAMENTAL: O AMOR DE DEUS

Mostramos, de começo, como Spinoza se afastou do mundo paterno e do judaísmo. Já, então, podemos dizer que ele nunca pôde perdoar a Miguel de Spinoza a morte de sua mãe. Agora, entretanto, em seu pensamento, a reconciliação com o pai celebra um triunfo inaudito, o que é, ao mesmo tempo, expiação dessa fatalidade que, na imaginação da criança, se processa como uma separação entre o filho e o pai, ou entre a filha e a genitora[15].
Em nenhum filósofo, de toda a história do espírito, sente-se Deus, com uma ação tão universal, com uma presença tão grandiosa e evidente, como em Spinoza. Ao mesmo tempo, é Deus que constitui o caráter essencial da sua filosofia. Nele está a união, ou melhor, a unificação e a fusão do princípio criador com o princípio fecundado e ativo. Deus sive Natura. Deus quer dizer Natureza. Isto constitui a fórmula básica de Spinoza.
Com essa fórmula ele se eleva, mágica e misticamente, ao princípio do Universo. Essa aliança de Deus com a Natureza representa, porém, aquela união e aquele matrimônio que, ao ser destruído, tornou tão aziaga a estrela da sua infância. Esta interpretação da sua concepção fundamental, não esmaece, no entanto, a força filosófica e, muito menos, invalida o pensamento filosófico spinozista.
Quem cresceu tanto como ele, no meio das comoções religiosas, bem podia ter-se tornado ateu e ser assim insultado durante um século, para ser elogiado no outro. Mas, para Spinoza a felicidade de estar ao abrigo de Deus é tão decisiva como para qualquer outro místico judeu, ou cristão. Ao mesmo tempo, a natureza real do homem e do mundo são para ele importantes, quanto para os seus predecessores e mestres, Bacon e Hobbes.
Nenhum traço de superstição mancha a sua concepção de Deus. E, quando a moderna astrofísíca, e a teoria dos tons, sublimam todas as vibrações e forças que compõem o nosso universo, até o desmaterializar, ficam em acordo com a caracterização que dá Spinoza à sua "Natureza", quando reconhece que a diferença entre Deus e o Mundo é uma questão de pontos de vista. Aquele concebe como natura naturans, a natureza ativa; e este, como natura naturata, a natureza produzida. Não é necessário explicar por que esse panteísmo grandioso exerceu influência tão decisiva sobre os poetas, as naturezas poéticas e sobre certos temperamentos.
Aqui, a essência fluida e criadora do pensamento se eleva à mais alta e lúcida claridade. Ela teria que deslumbrar e subjugar os alemães, entre os quais a luta pela verdade foi sempre mais forte que a aptidão para lhe dar forma e aprendê-la. Por isso, a partir do século XVIII, Lessing e Herber, Goethe e Novalis, Scheirmacher, Schelling e Hegel foram os heráldicos redescobridores da grandeza de Spinoza, de sua originalidade, e de sua significação universal.

2) O MÉTODO GEOMÉTRICO

É preciso, entretanto, que se assinale aqui o fato de não haver Spinoza contribuído, de modo algum, para que aquele pugilo de sábios digerisse a sua filosofia e a assimilasse. O seu método expositivo, a célebre demonstração "more geométrico", de que se serviu, muito antes de escrever a ÉTICA, tem um duplo objetivo e um duplo efeito: assegurar, até à evidência, as ideias que devem ser conhecidas e excluir tudo que possa perturbar ou se misturar, em qualidade, com os elementos sentimentais e outras causas, que porventura venham a se imiscuir no ato de pensar.
Este é precisamente o traço principal da fisionomia espiritual de Spinoza, mas que hoje se considera como anacrônico e caduco. Sabemos, contudo, com que paixão a sua época se arrojava ao jogo das fórmulas matemáticas, ampliando, mesmo, os limites desta ciência, e, o que, para esse tempo, significava o nome de Newton. Ainda que não possamos nos subtrair ao prazer estético, inerente a este jogo geométrico e, quando, além disso, compreendemos o impulso para o maior e o melhor e consideramos, como resultado mental intransigente, numa época de fermentação e de ebulição, o esforço para conseguir, de um único princípio, a dedução lógico-matemática, — devemos felicitar o leitor atual deste método geométrico e lhe transmitir os pensamentos de Spinoza sem recorrer a ele.
Isto é bem possível, de vez que não achamos conveniente expor a sua filosofia com todas as sutilezas e detalhes da época. Dela aproveitaremos apenas aquilo que for capaz de fazer vibrar o homem de hoje. Spinoza é um espírito dogmático. Por isso lhe é inerente dominar os seus leitores. Para ele tem importância edificar um sistema sem lacunas com o menor número possível de princípios básicos e de definições. Cada coisa tem desde logo ligação com outra, como na caracterização do macrocosmo do doutor Fausto: "Como tudo se move para formar o conjunto, o todo, cada coisa se agita e vive na outra! Como as forças celestes que se elevam e que se abaixam para caírem, por fim, sublimadas nas taças de ouro."
Assim, são precisos anos de aprofundamento e de reflexão interior para se encontrar os pontos de contacto de seus princípios fundamentais e outros tantos anos para se percorrer incansavelmente, as zonas do conhecimento, até se divisar o segredo da sua estrutura. Se não se consegue isto, se não percorremos esse terreno, então essas reduções, relações e provas, nos aparecerão como andaimes ou como aquelas hipóteses auxiliares, mediante as quais chegam os matemáticos, dedutivamente, a resultados verdadeiros.
Como exemplo das definições de Spinoza, tomemos as seguintes frases: "Por causa de si mesmo entendo aquilo cuja essência inclui necessariamente a existência; ou aquilo, cuja natureza não pode ser pensada senão como essência (sobre Deus) ou: "Entendo por corpo ou forma do ser (modus) que expressa, de certa e limitada maneira, a essência de Deus, considerado como coisa especial."
Se apresentarmos estas frases ao raciocínio vulgar, elas aparecem vazias de sentido, ou ainda, vazias como casca de um fruto, ou ainda mais, como mero exercício conceituai escolástico.
Mas, se recordarmos que, para Spinoza, Deus e Natureza são a mesma coisa, e que nele, Deus, está tudo o que existe, que o próprio Universo aí se encontra, então a primeira frase significa que esse Universo é a causa de si mesmo e não pode ser representado senão pela sua existência e não como criado, isto é, tirado do nada.
A segunda frase explica que. em todo objeto existente, está a essência de Deus, dentro da sua medida ou pelo caráter fundamental de extensão, participando, assim também de toda a extensão do Universo. Estes exemplos são extraídos dos princípios do primeiro e segundo volumes da ÉTICA. O primeiro dos quais trata, como se viu, "De Deus" e o segundo "Da natureza e origem do espírito." Como, porém, estes dois livros da ÉTICA devem ser comentados e interpretados, frase por frase, pois só assim serão compreensíveis a todos, deixou o autor de incluí-los na presente edição. Por esse método geométrico, por sua aplicação sutil, laboriosa e profunda dos princípios e das definições, com todo o sistema de atributos, dos modos e das formas da existência, passa Spinoza do pensamento medieval aos processos do pensamento moderno das ciências naturais.
Mesmo que a sua tese nos aparecesse, no entanto, desde logo clara, com as suas frases bem luminosas, teríamos que levar em consideração o conjunto do seu inaudito esforço: incluindo no mundo coerente e sem lacunas, um quadro igualmente coerente e construtivo do espírito e construindo ou refletindo, intelectualmente, o que existe, tornando-o utilizável e transparente ao espírito humano, da mesma maneira que uma obra de arte, cujo objetivo é o de se tornar permeável ao sentimento, à vida da sociedade humana.
Na economia da existência humana nunca é vão o sacrifício imenso que faz o filósofo quando subtrai do mundo dos objetos todas as faculdades que lhes são inerentes, como as de amor, atividade, luta, para as transformar em contemplações espirituais e compreensão intelectual. Ele transforma o curso dessas forças, crio o mundo com o seu raciocínio, luta contra a totalidade, até obter desta uma nova totalidade, que é a interior, ou seja, a visão pessoal da imagem do mundo[16].
Aí o filósofo se esconde, como aquele menino em uma urna, segundo o desenho, cheio de sentido profundo, do mestre Hans Thoma.
Numa urna de cristal está a criança. As superfícies desta e os seus ângulos lhe são familiares e adequados. Ela os vê do interior da urna e os compreende. Eis aí o segredo da intuição, da verdade que se revela ao espírito em estado de contemplação, sem se precisar assim das muletas da demonstração. Por esta contemplação, se opera uma união mística com a fonte primária do saber. Desta verdade intuitiva disse Spinoza que "é o índice de si mesmo e do erro".
Quando se diz que dois e dois são quatro, e que a cor laranja se encontra entre o vermelho e o amarelo, demonstra-se, num anunciado trivial, a mesma categoria desses fatos. Estamos convencidos de que, para preparar estas chispas de ideias, levou o cérebro humano dezenas de milhares de anos num esforço continuado de meditação ininterrupta, tateando na sombra, desde os períodos da história primitiva e da pré-história, época em que o homem não havia ainda penetrado na meditação ou mesmo numa simples associação de ideias. Para o homem atual, no entanto, a Intuição não necessita de prova. Ela é evidente, clara, irrefutável. Em axiomas e intuições, Spinoza constrói o seu edifício intelectual e lhe dá uma base.
O homem dispõe de dois meios de conhecimento. Um deles, pouco valioso; o outro, mais precioso, é o julgamento racional. A necessidade de um sistema chega até os nossos dias através de outros sistemas assinalados por épocas obscuras, mas que, nem por isso, deixaram de fazer bem à humanidade Nestas épocas já se acreditava ter atingido o homem a soma dos conhecimentos particulares que lhe podiam ser acessíveis.
Sabemos hoje, entretanto, que, precisamente, com a época de Spinoza é que se começou o estudo da natureza, da observação do mundo, do conhecimento do homem como um ser novo. É aí que este encontra sua verdadeira expressão na multiplicidade de disciplinas, na pluralidade das ciências, material imenso que se dividiu, partindo-se, separando-se e confundindo o saber humano. Naturalmente isto nada significaria se pretendêssemos atacar o saber humano assim decomposto, pois apesar disso é dele que tem vindo essa embriaguez da ciência, de conhecimento e de melhoramento técnico da vida.
E a nossa tarefa é agora idêntica, sintetizando, exortando, reunindo e unificando os pontos de partida dos grandes filósofos, através dos seus sistemas, ou das suas construções arquitetônicas. Necessitando o homem de um ponto de apoio espiritual, diante da plenitude do seu ser, deve ele procurá-lo na força do seu próprio pensamento — e não pretender buscá-lo num Deus alheio ao mundo, num poder transcendente, em representações ocultas, na astrologia, ou no espiritismo. — É esta a função do filósofo construtor no seio da sociedade. Com esse poder ele renova o homem e a força do seu espírito.
Um mestre como Spinoza fala a todas as épocas: "Serve-te de tua inteligência, legue-a, confia nela, aprende a empregá-la e a te deixar guiar por ela." Eis aí o único ditador que faz progredir o mundo. É o processo criador que se opõe ao caos que nos enche de angústia. Nesse processo criador está a força luminosa da ilustração e também a paz e a forma.
Esta força nos dá os meios de saber olhar as leis do universo, na inviolável necessidade do ser e do não-ser, que repousa em nós mesmos e que só satisfaz a nós mesmos. Esta força suplanta até mesmo a morte, de vez que uma coisa pensada, com justeza, traz em si a perspectiva de sobreviver a todos os impérios e de marcar, com uma significação eterna, as épocas mais transitórias.
O sistema de Spinoza pode ser assinalado com uma das mais finas redes de filigranas, com as quais, em nenhum outro tempo, conseguiu a habilidade do homem captar o mundo. Deus, ou a Natureza, é a origem de todo ser e de si mesmo. Entre as suas infinitas e numerosas propriedades, ou atributos, figuram o pensamento e a extensão, de modo que não pode existir nenhum pensamento sem extensão e nenhuma extensão sem pensamento.
A essência de Deus é imutável e perfeita, perfeição não só no sentido ético, como também perfeição no sentido matemático, correspondendo, portanto à condição que se expressa por plenitude completa. Daí resulta que em Deus, ou na Natureza, tudo existe e tudo está presente, mesmo que seja mal, perverso, ou nocivo.
E como tudo isto existe desde as origens, nada pode se dar como surpresa, porque tudo foi dado e determinado desde o começo. Isto significa ainda o repúdio de toda liberdade arbitrária, de toda a casualidade, de toda a teologia que subordina cada coisa criada a uma finalidade raciocinável, introduzindo também aí aquele determinismo que hoje volta a ser superado pelas ciências naturais, mas que era antigamente exigido pela física mecânica.
Com estes meios entra Spinoza no organismo do Universo e no seu determinismo sem lacunas. Deus ou a Natureza, no seu infinito absoluto é para ele a causa eficiente de toda existência que, por sua vez, só se manifesta através de formas da mesma substância divina.
Essas formas nascem como as ondas surgem do mar "que cria constantemente novas formas, fazendo-as sucumbir, sem que, por isso, modifiquem a infinita extensão do mar." Estes são os modos da substância e de seus atributos e o homem em si mesmo é um desses modos. Estes modos produzem o jogo eterno da criação, do surgir e o do sucumbir, sem que cesse, entretanto, a imutabilidade da base original, que é eterna, ou mais claramente, que é a eternidade.
Assim se agita a natureza. A criadora (natura naturans) e a criada (natura naturata) se fundem nesse panteísmo que, para Spinoza, dá ao mundo uma alma, sem afetar o valor das leis naturais

4) A ÉTICA DO METAFÍSICO

As ideias que se desdobram do sistema de Spinoza, o leitor as encontrará concentradas neste livro. Elas são o seu mundo próprio, a sua substância própria, que Spinoza chamou ÉTICA e que trata dos fatos morais, dos valores hierárquicos, da vida e da conduta moral. Praticamente, o moralista começa tropeçando com uma grande dificuldade. Pois, como qualquer outro investigador naturalista, não distingue, propriamente, o Bem do Mal em si mesmos, assim como todo o reino dos valores estéticos e morais.
Convence-se, por outro lado, de que da transposição dos valores morais até o plano das simples representações humanas, há um longo caminho a percorrer, para que se possa depois estabelecer os fundamentos do ato moral. Entretanto, para o homem que aqui nos ocupa o espírito, as coisas não se deram por esse modo. Ele não se inclinou nunca ao mais fácil e nunca foi também ágil, quer na sua vida, quer no seu pensamento.
Por outro lado, o tom novo com que Spinoza filosofava em torno das suas descobertas espirituais, revela, claramente, a importância que concedia à sua tarefa, quando estava sob o domínio do raciocínio filosófico. Sob a sua fria exposição, percebe-se a afluência e o tumulto da paixão frenada de um grande estilista.
Dum momento para outro, sente-se que já não é a matemática, ou a lógica, que marca o tom da sua exposição, mas o simples desejo persuasivo do Mestre em querer mostrar o caminho da verdadeira vida. Ele segue esse caminho do seguinte modo: primeiro, considera a natureza do homem e os acontecimentos essenciais do mundo dos instintos, tais como estes se apresentam a um naturalista. Depois, deduz daí todas as ocorrências peculiares à vida quotidiana dos incultos e confronta essas ocorrências com as ideias diretoras que, segundo o seu critério, conduzem o homem, escravo dos próprios desejos, à superioridade do espírito puro, libertado.
Tal é o verdadeiro spinozismo que encaminha o homem para a liberdade, para a felicidade da renúncia, para essa felicidade que ele não se cansa de celebrar, porque não se cansa de vivê-la. O ser humano, que parece um mundo, um fenômeno, não é, para Spinoza, mais que uma folha pendente da árvore gigantesca que é o Universo, movido pelo mesmo instinto porque também se abriga no homem. Se este instinto é perturbado, surgem para o homem o sofrimento e a aflição. Se a perturbação cessa, vencida pelo instinto original, a alegria inunda, então, o ser. Desta oscilação entre ambos os polos nasceram as emoções, as paixões, as tendências, mas também as forças que as dominam.
Assim, entre o amor e o ódio, estende-se um espaço, no qual tudo que é desejado e útil é conservado, enquanto que tudo aquilo que é capaz de ameaçar a nossa existência é reprimido. Eis porque Spinoza considera virtuoso aquele que se esforça para manter o seu próprio ser, condenando aquele outro que procede de maneira oposta. Porque, o universo, ou Deus, estende-se, no infinito, com todas as suas forças, trabalhando para dominar o não-ser.
Por isso, agir sob o controle da razão é também salvaguardar a própria vida e o próprio ser. Assim se age, sem nenhuma dúvida, virtuosamente. "A razão se esforça simplesmente para conhecer, e a alma não julga útil senão aquilo que conduz ao conhecimento. De modo que o bem mais elevado da alma é o conhecimento de Deus. A sua mais alta virtude é conhecer Deus, o que significa estar de acordo com a nossa natureza."
O leitor se convencerá por si mesmo como, a partir daí, Spinoza desenvolve toda a gama, ou estados instintivos do homem e como ele, criatura causticada, conhece o caminho que nos conduz à paz, ao equilíbrio oscilante de quem vê as coisas sub specie aeternitatis (à luz da eternidade). É o máximo a que um homem pode atingir.
Quem contempla verdadeiramente Deus, quer dizer, a augusta necessidade de tudo acontecer no universo, deve amá-lo, como o próprio Deus deve amar a si mesmo, porque há sempre em tudo a consciência da essência própria.
Na chama ardente dessa luz evaporam-se as ilusões das nossas paixões e, então, começa o caminho espiritual que nos conduz à mais alta felicidade, ao amor Dei, no qual encontramos a suprema virtude. Nele se liberta também o modus homem, alcançando a única imortalidade que lhe é dada. "Ainda que o caminho assinalado pareça muito difícil”, diz Spinoza na ÉTICA, “pode, contudo, ser encontrado."
Certamente não há de ser fácil encontrarmos aquilo que não procuramos com frequência. Se a solução estivesse em nossas mãos, nós a desprezaríamos com tanta facilidade? Tudo o que é grande é também raro e difícil de ser alcançado. Para Spinoza é livre quem se mostra capaz de raciocinar, pensar e concluir sem medo, opondo-se às paixões desabridas, reconhecendo o caráter errôneo ou falso das emoções, enfrentando ativamente, a negação ou a afirmação, na ação ou na obstinação dos que lutam pela verdade. Este é o fruto da sabedoria de Baruch Spinoza, tal qual é apresentada em seus livros e tal qual se deduz da vida pura.
Quando lemos que a verdadeira liberdade do homem surge à medida que ele se liberta de suas paixões para se unir à origem do mundo, a Deus, percebemos, como que através de uma nuvem, os olhos melancólicos e o sorriso indeciso daquele homem singular que saiu da imigração portuguesa, da comunidade judaica de Amsterdam, para tomar lugar no Panteão da sabedoria e do pensamento humano, jorrando, assim, no mundo, uma luz maravilhosa e eterna

NOTAS
[1]Realmente pela primeira vez na Inglaterra, um soberano, altamente influenciado por dois ministros, Búkingiane, Strafford, um bispo, Land, e pela sua própria mulher, Henriqueta de França, desencadeia violenta oposição ao Parlamento, tornando-se depois déspota, numa ocasião em que a luta religiosa, chefiada por Oliver-Cromwell, empolgou o povo inglês. Subindo este ao governo, o rei foi, depois de haver sido considerado como traidor, executado em Whitehall. Daí seguiu-se uma república que teve vida breve.
2]Não tão livre, então. Quando este livro foi escrito, a rainha Guilhermina partia para o exílio com a fé inabalável em Deus de que a sua Pátria voltaria em breve a ser novamente livre. Caíra então nas mãos dos alemães que tomaram essa nação heróica, como foram tomando tantas outras, numa fúria cega de conquista, que fez a humanidade regredir, espiritualmente, aos tempos medievais
[3]Pelos motivos expostos na nota anterior, já não era assim.
{4] Lembremo-nos daquele sopro de espiritualidade e de beleza que nos trouxe Maurício de Nassau e sua esplêndida comitiva de artistas que até hoje tem provocado um dos debates mais belos entre os entendidos da nossa história.
[5]O autor, para defender o seu ponto de vista, faz algumas confusões no tocante à história das instituições espanholas. Assim, existe aí uma inexata interpretação daquilo a que ele chama pureza, com as decisões do santo ofício e as expulsões.
[6]Designação injuriosa que se dava aos mouros e judeus.
[7]O testemunho de um novelista não deve servir de base para uma anotação histórica.
8]Parece que aí existe um ligeiro equívoco, ou talvez, falta de clareza no pensamento expresso por Arnold Zweig. Freud não teria confirmado a frase de Rudyard Kipling, senão inversamente; Kipling é quem confirma o postulado da psicanálise.
[9]São perguntas que a psicanálise responde hoje através da experiência de sua técnica e do conhecimento de suas aplicações e que o autor pode explorar, porque se mostra, em muitos pontos e aspectos desta introdução conhecedor, da doutrina de Freud, revelando-se até mesmo muito simpático a ela. Não há, pois, razão de fazer essas perguntas desde que recorra ao "complexo de Édipo", com toda a sua constelação de reações.
[10]Mais conhecido pelo nome de Thomaz Aniello, pescador em Amalfi, em 1623, assassinado em 1647.
[11]Não seria melhor através de dialética?
[12]De fato, encontramos muitas outras fontes nas quais Spinoza se inspirou. Assim, nas idéias de Moisés de Córdova (identificação de Deus com o universo); nas de Ben Gerson (eternidade do mundo); nas de Hasdai Cresças (matéria do universo corporificada em Deus); nas de Maimônides (imortalidade impessoal) etc. Mas, é preciso notar que tudo isto são fontes de inspiração — apenas — porque Spinoza, através da sua intuição maravilhosa, é ele mesmo, original, sozinho. Contudo, por esses motivos, não parece justa a explicação psicanalista que dá Arnold Zweig à ideia da filosofia spinozista (aliança, de Deus com a Natureza).
[13]Primeiro magistrado da república holandesa.
[14]Tuberculose galopante.
[15} Refere-se aí ao "Complexo de Édipo", exposto por Freud na sua doutrina. Depois de rompido esse "Complexo", o filho se reconcilia como o pai e a filha com a genitora, se essa fase edipiana é vencida normalmente. Antes, porém, o "Complexo de Édipo" tem, como prelúdio, um período, mais ou menos longo, em que as meninas têm como rivais a própria mãe e os meninos o próprio pai e de cujas rivalidades surgem ciúmes rancorosos que podem sucumbir em graves neuroses. No "Complexo de Édipo" está o cordão umbilical do indivíduo e que é cortado quando ele deixa a família para se converter em membro da comunhão social. Em muitos, o cordão subsiste, ou não foi devidamente cicatrizado.
[16]Mais claramente: introverte as forças reais do mundo exterior em forças interiores, espirituais.

segunda-feira, 19 de março de 2012

FILME As Confissões de Schmidt, de Alexander Payne (2011)

Elenco: Jack Nicholson, Kathy Bates, Hope Davis.
Começo a falar de um novo lançamento. Trata-se de um filme cujo título é "As Confissões de Schmidt", do diretor Alexander Payne, o mesmo de "Os Descendentes", que concorreu ao Oscar neste ano, mas muito melhor que esse.

Para começar, Schmidt é Jack Nicholson, o que já garante metade do filme. Mas o filme vai muito além desse grande ator.
Síndrome de Schmidt, nome inventado, descreve o quadro de total melancolia em que se encontra o personagem central, um homem de 60 anos, após a aposentadoria e morte repentina da sua mulher. Mas qual é o diagnóstico diferencial com relação a outras formas de melancolia? Vejamos.
O filme abre com um discurso de um colega em sua homenagem, quando Schmidt se aposenta da companhia de seguros em que trabalhou a vida inteira (no caso, companhia de seguros carrega todo o peso de viver para ter uma vida segura).
Logo após a morte da sua mulher, ele descobrirá que ela fora amante do colega que discursou em sua homenagem em sua cerimônia de despedida da "firma". A cena da descoberta é feita com requintes de crueldade, porque Schmidt está imerso nas roupas da mulher morta, buscando sentir seu "doce aroma" e assim matar a saudade que sente dela.
Schmidt tem uma filha que casará com um sujeito horroroso, de uma família brega que se julga especial: você conhece coisa pior do que festa de Natal em família? Sim: uma festa de Natal em família em que os presentes são frutos da criatividade ridícula dessa família, como no caso da família do genro de Schmidt.
Schmidt fazia xixi sentado como menina porque sua mulher o proibia de fazer xixi como menino, a fim de não sujar o banheiro.
Esse é sintoma diferencial da síndrome de Schmidt: esmagar-se (mesmo sua fisiologia) para deixar tudo em seu lugar, sem conflitos, amar a paz e o bom convívio em detrimento de si mesmo. No caso específico, não há "questão de gênero" (já que banheiros estão na moda nesse assunto, vale salientar que aqui não é o caso).
Primeiro porque eu não acredito em questões de gênero, só em questões de sexo. Depois, porque não se trata de falarmos em homens vítimas da opressão feminina (ainda que se trate de alguma "opressão" nesse caso, já que, afinal, sua mulher o obrigava a fazer xixi como menina e o traiu), mas sim de falarmos de alguém que descobre que sua vida foi e é vazia, apesar de ter sido um pai e esposo dedicado, e não um desses canalhas que saem com mulheres fáceis por aí.
A síndrome de Schmidt pode e afeta também mulheres, portanto não é uma questão do sexo masculino. Mas no filme é uma questão masculina (o sexo masculino "suja banheiros") e o é antes de tudo porque, como se sabe, homens trabalham, às vezes até brincam com os filhos, mas são as mulheres que detêm o monopólio da subjetividade e da sensibilidade.
Mulheres "conhecem a si mesmas", homens não. Schmidt é uma caricatura do homem que acreditou que, cumprindo seu papel, estaria a salvo da devastação da falta de sentido da vida e do amor. Apesar das modinhas, as mulheres temem a subjetividade masculina como o diabo teme a cruz.
Homens não sabem falar de si mesmos. E, no fundo, é melhor que continuem assim (pensam as mulheres e os filhos): vivendo como Schmidt, no silêncio da função paterna e marital. Isso muitas vezes é objeto de piadas nas quais homens são comparados a carroças, enquanto mulheres são comparadas a grandes jatos.
Na realidade, a vida comum das famílias supõe que os homens continuem a trabalhar sem crises existenciais; qualquer coisa que se diga ao contrário disso é mais uma mentira da moda.
Isso não significa que não existam exceções, mas essas são apenas exceções. Homens com crises existenciais ficam sozinhos.
No caso de Schmidt, tudo que sua filha quer é seu cheque, e não sua presença. O filme é bom o bastante para mostrar que talvez nessas famílias "normais" não haja mesmo possibilidade de grandes relações entre pais e filhos, muito menos entre pai e filhos.
Talvez esse venha a ser um dos debates do século 21: o que fazer quando os homens começarem a falar?

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

LIVRO SENHORITA CHRISTINA.

ELIADE, Mircea. Senhorita Christina.Tordesilhas, 2011.

Sempre nutri um interesse específico por almas penadas. Não por acaso, tornei-me, entre outras coisas, um estudioso de religião.
Para alguém como eu, dado a uma sensibilidade monotonamente cética, espanta como há 300 mil anos (desde o Paleolítico), mais ou menos, a humanidade crê em e vive cercada de seres sobrenaturais atormentados que nos atormentam.
As almas que padecem como se fossem vivas me encantam. Uma amiga minha costuma dizer que o mundo do além é pior do que este em que vivemos. Esta forma de crença em espíritos me apetece.
A forma segundo a qual, como apresenta o horroroso filme "Nosso Lar", espíritos desfilam seus modelitos batas hippies à la Roma antiga e suspiram ares de amor por toda a humanidade me entendia profundamente.
Portanto foi a agonia do sobrenatural, o possível desespero sem fim da alma humana nas suas variadas formas, desde o pecado original judaico-cristão até o abismo sem fundo de espíritos condenados às paixões humanas mais baixas e eternas (enfim, o mal na sua forma encarnada) o que me levou ao estudo das religiões, e não qualquer forma de fé em divindades ou ódio ideológico (comum em especialistas em religiões) contra as religiões.
Sou imune à dependência ou necessidade psicológica que caracterizam a maioria dos crentes. Tampouco partilho da falsa virtude intelectual que alimenta o orgulho infantil de muitos ateus.
Parece ter sido algo semelhante que levou o romeno Mircea Eliade (1907-1986) a se tornar um dos maiores historiadores da religião.
Eliade começou sua carreira escrevendo, junto com seu doutorado, sobre mística hindu, ficções de terror, e o título deste post tem a ver com uma boa notícia para quem aprecia a obra desse grande intelectual romeno.
A editora Tordesilhas acaba de publicar entre nós, numa edição muito bem-acabada, o romance gótico "Senhorita Christina", de 1936, de Mircea Eliade ("Domnisoara Christina", em romeno).
A edição traz um excelente posfácio analítico assinado por Sorin Alexandrescu (especialista em literatura romena e sobrinho de Mircea Eliade). Para Alexandrescu, Eliade descreve um mundo entre a carne, a morte e o diabo. E seu romance nos leva para esse mundo.
Senhorita Christina, a personagem principal do romance que carrega seu nome, é uma "strigoi".
"Strigoi", em romeno, significa um ser sobrenatural maldito, meio humano, meio monstro, um morto-vivo. O famoso vampiro é uma forma de "strigoi".
A cultura ancestral romena é saturada de narrativas de "strigoi".
O pessimismo na Romênia brota do solo dos Cárpatos e da Transilvânia. Vem junto com o leite materno. Basta lermos outros romenos ilustres da mesma geração de Eliade, como o filósofo Cioran e o dramaturgo Ionesco.
"Strigoi" são sedentos de sangue humano, assim como da vida dos mortais, que são consumidos por esses infelizes atormentados para quem o fardo maior é saber que a morte pode não ser um descanso.
Christina, uma mulher linda, sensual e rica, morta aos 20 anos por um amante, depois de uma vida devassa, atormenta a propriedade onde vivia e que, agora (quase 30 anos após sua morte), é habitada por sua irmã e duas filhas.
Igor, um pintor famoso, apaixonado por uma das sobrinhas da vampira Christina, se hospedará na propriedade. A infeliz vampira se apaixonará por ele e tentará desesperadamente seduzi-lo.
A obra foi considerada por muitos um livro pornográfico, devido às cenas eróticas entre a morta Christina e o pintor Igor.
Ao contrário do que se espera, Christina sofrerá como qualquer mulher apaixonada devorada pelo desejo erótico negado. Suas habilidades monstruosas emudecem diante do amor impossível pelo mortal Igor.
O livro é uma história de amor e desejo como maldição eterna, por isso é uma obra romântica que fala da alma sempre presa entre o corpo e o mal. Sem a esperança da morte, Christina sofrerá.

sábado, 21 de janeiro de 2012

LIVRO - PORQUE O OCIDENTE VENCEU

DAVIS, Victor Hanson. Porque o Ocidente Venceu - Massacre e Cultura - Da Grécia ao Vietnã. Ediouro, 2011.

A história da guerra não é a história da moralidade, nos previne Victor Hanson Davis em seu livro Porque o Ocidente Venceu, da Editora Ediouro, 703 páginas. E é sob essa perspectiva que Hanson (também colunista neste site http://www.midiaamais.com.br/victor-davis-hanson) analisa os motivos que levaram o Ocidente a superar outros exércitos numericamente superiores ao longo da história. E, através dessa análise, destaca os grandes valores ocidentais que, ao lado da tecnologia e de armas superiores, fizeram da cultura ocidental uma cultura muito superior a de seus inimigos, tanto na guerra, como na paz.
Victor Hanson escreveu mais que uma simples análise das estratégias militares e de recursos bélicos do Ocidente, ele conseguiu analisar a estrutura que tornou o desenvolvimento do Ocidente em um diferencial. Ou seja, em cada uma das batalhas analisadas, demonstra como o governo, a economia de mercado, a estrutura política, o desenvolvimento tecnológico, a ideia de liberdade tiveram sérias consequências na defesa do individualismo, no desenvolvimento tecnológico e para a história ocidental.
Dessa forma, no livro são analisadas nove grandes batalhas, divididas em três partes:
Criação - abrange as batalhas da antiguidade clássica, como Salamina, em que gregos guerrearam contra os persas (480 a.C); Gaugamela, onde os macedônios conquistaram os persas (331 a.C) e Cana, em que os romanos lutaram contra os cartagineses (216 a.C).
Continuidade - analisa as batalhas de Poitiers, em que os francos lutaram contra os árabes, impedindo o avanço pela Europa (732); Tenotchitlán, que foi decisiva para a conquista dos espanhóis sobre os astecas (1521) e Lepanto, em que uma liga cristão luta contra os turcos otomanos (1571).
Controle - disseca as batalhas do período contemporâneo, como Rorke’s Drifit, entre ingleses e zulus (1879), Midway entre americanos e japoneses na Segunda Guerra(1942) e a Ofensiva Tet, entre americanos e vietnamitas (1968).
Na primeira parte, Criação, é demonstrado como os conceitos de individualismo e liberdade amplamente difundidos na Grécia Antiga fizeram diferença para os hoplitas que defenderam sua pátria contra um exército de escravos. Hanson tem a percepção que falta a muitos historiadores ao perceber que, além da disciplina, os soldados gregos tinham em si a busca pela liberdade. Não essa liberdade que muitas vezes é usada apenas como discurso ideológico, mas a liberdade prática, que evitaria que suas mulheres e seus filhos se tornasse escravos para o Império Persa.
Dessa maneira, é em cima da ânsia pela eleutheria (liberdade), pelos valores políticos caros ao cidadão grego que o genial Temístocles elabora sua estratégia naquela que seria uma das mais sangrentas e fascinantes batalhas navais de todos os tempos: a de Salamina, entre gregos e persas.
A guerra para os gregos tem valor político e cultural, além da questão militar. Para os persas, não há motivação e sim coerção intensa dos generais, além da carga tributária. Nesse aspecto há um traço comum entre persas, otomanos e astecas: eles são uma imensa sociedade dividida em milhões de habitantes, governados por autocratas e coagidos por generais.
Em Salamina ou em Midway, centenas de séculos depois, a luta pela manutenção cultural, pelos valores cultivados, possuem um individualismo que torna-se uma máquina de guerra conjunta.
No caso da batalha que tingiu de vermelho o mar dos Estreitos de Salamina, tão bem narrado por Heródoto, a base racional e humanista permitia aos líderes ouvir seus oficiais. Esse diálogo, também está presente na conquista espanhola. No lado oponente, fosse ele persa, asteca ou japonês do século XX, dificilmente haveria essa liberdade de ação.
A batalha naval liderada por Temístocles não foi a única para libertar os gregos da ânsia de dominação dos persas. Mas, foi a decisiva. Não teria sido possível a vitória em Mícale, sem Salamina e Plateia. Foi a estratégia grega, aliada aos valores descritos que venceram o imenso e, numericamente, superior exército persa. Ou seja, Salamina é a prova de que povos livres lutam melhor que os escravizados, ainda que essa escravidão seja intelectual.
Dessa forma, a herança grega foi definitiva para que Alexandre pudesse conquistar os persas na Batalha de Gaugamela em 331a.C. Hanson destaca que, apesar de posteriormente o imperador macedônio ter se orientalizado, seu estilo de batalha e comando eram tipicamente ocidentais e dentro da organização bélica ocidental, a liberdade de pensamento e ação era permitida e incentivada, gerando sempre inovações no campo de batalha que surpreendiam o inimigo. E, tal como acontecia com o exército grego, os homens de Alexandre queriam a batalha, não eram meros escravos, opinavam sobre o que estava acontecendo. A tal ponto de Alexandre discordar de seus generais e ouvir seus soldados, andando por entre as tropas nas vésperas de batalhas.
Mais uma vez, o profissionalismo do exército liderado por Alexandre e suas questões táticas fizeram do modo helênico de lutar, uma verdadeira máquina de guerra. Sem dúvida que o pai de Alexandre, Felipe II, fez algumas alterações na falange grega, dando nova importância a ela e tornando-a imbatível. É destacado no livro que Felipe II trouxera para a guerra ocidental uma noção mais sofisticada de guerra decisiva. E Alexandre aperfeiçoou esse legado para conquistar os persas.
Um aspecto interessante, é que Alexandre, após suas conquistas acabou se orientalizando muito e tornou-se um déspota com tendências teocráticas que não foram positivas para seu império após a sua morte, facilitando a fragmentação do território. Mesmo assim, seus avanços em termos militares é de extrema importância para o Ocidente.
Hanson ainda faz mais uma análise acerca da “criação” da máquina de guerra ocidental: a Batalha de Canas, em 216 a.C. Detalhe: nessa batalha não foram os ocidentais os vencedores. Então, por quê analisar justamente, dentro do episódio das Guerras Púnicas , uma das derrotas mais traumatizantes que já foi registrada na história ocidental?
Justamente por causa dos fatos seguintes, que levariam Roma à sua vitória final 70 anos depois.
Ao analisar as causas da derrota, Hanson evidencia que, naquela batalha especificamente, os romanos tinha sério problemas com a idade dos soldados e o comando não estava consolidado, gerando problemas estratégicos, mesmo o exército numeroso e possuidor de melhores armas. A narrativa é de Políbio e chega a ser chocante a forma como ele descreve os jovens soldados que nem chegaram a ser enterrados e tiveram seus corpos putrefando durante vários meses.
Ao ressaltar esse dado terrível de uma derrota, o autor destaca que: “A pior derrota em um único dia na história de qualquer força militar não alterou em nada o desfecho final da guerra. A simples estupidez simbolizada por generais incompetentes e táticas ruins neutralizara a vantagem intrínseca dos exércitos ocidentais. (...) No final, isso tudo fez bem pouca diferença”.
Ou seja, a maior lição de Canas é que não foi apenas o propalado gênio tático do general cartaginês Aníbal que fez toda a diferença. Foi também o exército inexperiente e mal conduzido dos romanos. No entanto, diante do massacre de Canas, a sociedade romana se mobilizou e estimulou mais cidadãos a irem para a batalha; ou seja, mesmo com tantos mortos, o exército se renovou.
Dessa forma, outra característica fica bem evidente no modo de guerrear do Ocidente: uma batalha perdida é realmente apenas uma batalha. A guerra é muito mais ampla. Tanto que é possível perceber isso nas análises subsequentes.
Na parte que é chamada de continuidade, Hanson assim justifica a escolha do nome através de batalhas que vão desde o alto medievo (Batalha de Poitiers - 732) e duas da época moderna, pois nas três há aspectos que evidenciam a noção de civilidade dentro da guerra herdados da Roma Antiga.
Dessa forma, a Batalha de Poitiers de 732, também conhecida por Batalha de Tours, é extremamente importante, não apenas pela questão de ter impedido o avanço dos árabes muçulmanos para dentro do continente europeu, como também representou a manutenção de muitos valores ocidentais que seriam difundidos por toda a Europa da época. É consenso entre os historiadores que a Europa tem sua gênese muito fincada no medievo.
E, analisando por esse aspecto, quando Carlos Martel se apropria do jeito romano de lutar e chama para a batalha homens livres, é a continuidade dos valores ocidentais colocados em evidência.
É claro que o exército de Carlos Martel não era tão disciplinado, nem tão grande quanto um exército consular romano, mas a maneira como seus lanceiros e espadachins pesadamente armados foram recrutados, mostrava bem essa relação com o passado.
Dessa forma, quando os europeus, durante a expansão marítimo comercial, chegaram ao território americano, não havia um outro objetivo a ser atingido a não ser vencer. Isso fica muito claro na conquista da cidade asteca de Tenotchitlán.
Tal como Poitiers, a conquista dos astecas está ligada ao processo de continuidade da estratégica bélica ocidental. Dessa maneira, Hanson analisa esse episódio sob a ótica da superioridade tecnológica e do sentido da guerra para o ocidente. Ou seja, as condições para os espanhóis eram muito mais complicadas que o senso comum costuma supor. Tanto que os homens de Cortés ficaram sitiados de 24 a 30 de junho de 1520, em uma das situações mais tensas enfrentadas pelos espanhóis na América. Muitos homens foram abatidos nesse período. Outros tantos foram executados (sacrificados) e muitos morreram em decorrência de doenças tropicais.
O que fez toda a diferença foi o conceito de guerra. Hanson nos chama a atenção para a grande diferença que existia entre a guerra teatral dos astecas e a guerra para vencer dos espanhóis. Os astecas não faziam armas para eliminar o exército inimigo; não se tinha a noção de ser perder uma batalha e voltar para o combate posteriormente. Dessa maneira, quando os espanhóis não só voltam para a batalha, como fazem um certo estratégico e ainda se aliam aos inimigos dos astecas (povo que dominava e sacrificava seus vizinhos), a reação foi dispersa e ineficaz. Cortés sofreu todo tipo de resistência, mas as superou se utilizando da tecnologia e estratégia tipicamente ocidentais.
Na última parte, intitulada Controle, a análise parte da batalha de Rorke’s Drifit, em 1879, entre zulus e britânicos, na África. Essa batalha foi precedida por uma episódio muito parecido com La Noche Triste em que os espanhóis foram quase vencidos pelos astecas. No caso dos britânicos, o massacre de Isandhlwana, em que houve uma desastrosa derrota, apesar de todas as condições para que a vitória fosse a consequência natural. E, tal como aconteceu em Canas ou com os espanhóis na conquista dos astecas, após uma derrota aviltante, segue-se uma vitória exemplar. No caso de Rorke’s Drifit, havia um número muito reduzido de homens britânicos em relação aos guerreiros zulus e eram muito maiores as chances de uma carnificina.
É desse aspecto que se tiram algumas conclusões, como a de que guerreiros não são soldados. Ou seja, é preciso muito mais que coragem para que uma batalha seja vencida, é necessário disciplina e ordem. Como os soldados britânicos demonstraram ao organizar o acampamento de tal forma que conseguiram, durante uma noite toda, conter os avanços dos zulus. Tal como em Tenotchitlan, o conhecimento tecnológico fez diferença, inclusive na questão da defesa e do ataque, usando sacos para construir um muro de proteção. Ou seja, estratégia e tática perfeitas. Os zulus não conseguiram resistir à forma ocidental de guerrear.
Algumas considerações valem a pena sobre todo esse contexto: não adianta os povos rivais terem a mesma tecnologia dos Ocidentais. A combinação de ideologia, tática, estratégia e tecnologia é que fizeram a diferença. E, acima de tudo, liberdade. Isso fica bem evidente na mais terrível batalha já travado em mar aberto: a de Midway, entre Estados Unidos e Japão, em 1942.
O Japão havia se ocidentalizado em muitos aspectos, mas não me suas instituições políticas. A guerra nos moldes ocidentais baseia-se nos valores sociais e políticos que vão além da posse tecnológica de armas. É preciso que exista a livre investigação, método científico e produção de conhecimento. Ou seja, o Japão nunca teve uma visão política que estimulasse o individualismo.
Em uma batalha tensa, equilibrada, a ação individual faz toda a diferença. E em Midway fez muita diferença. Um outro aspecto foi o fato de que, a inegável vantagem de todos os porta-aviões japoneses carregarem torpedos ao invés de bombas foi neutralizada pela confusão neutralizada nos conveses de decolagem.
Isso evidencia que batalhas raramente levam boas políticas em consideração. O ritmo é muito mais rápido, o que exige uma adaptação imediata e a ortodoxia nipônica pôs tudo isso a perder.
Conclusão: havia uma rígida hierarquia e uma submissão completa do indivíduo ao imperador japonês. Mais um caso em que a cultura ocidental fez toda a diferença.
A última batalha a ser analisada é a encarnação do conceito de paradoxo: a Ofensiva do Tet, durante a Guerra do Vietnã. Hanson se utiliza dessa batalha para analisar todas as questões envolvidas na guerra do Vietnã, principalmente o papel do sensacionalismo da imprensa que acabou por causar comoção nacional e, dessa forma, ser decisiva na retirada das tropas americanas da guerra.
Hanson avalia o poder de fogo americano e a forma confusa utilizada pelos vietnamitas para atacar a embaixada americana em Saigon e como isso foi divulgado pela imprensa como algo negativo, ignorando que a estratégia comunista matou milhares de inocentes.
É possível observar nessa última análise o quanto a imprensa foi manipuladora em suas imagens, nas entrevistas e como o efeito foi devastador para a opinião pública americana que alternava entre a compaixão com os vietnamitas do norte mortos e a condolência sentida pelos soldados americanos que morreram. Claro que esses aspectos não levam nenhum exército à derrota, mas assustam governos sob a pressão das eleições.
O autor compara essas situações às enfrentadas pelos atenienses durante a Guerra do Peloponeso e, através dessa argumentação, demonstra como os ocidentais pagam o preço pela liberdade de se dizer o que se quer. Justamente por isso é que o capítulo sobre o Vietnã é iniciado com a crítica de Tucídides à inconstância ateniense e à falta de apoio à expedição que atacaria a Sicília. O ensinamento de Tucídides vale para o que se vê ainda hoje, pois o historiador grego acreditava que “os siracusanos haviam se revelado guerreiros tão bons contra Atenas porque eram uma sociedade livre e democrática igual aos atenienses. Ele concluiu que as sociedades livres são as mais resistentes na guerra.”.
Um detalhe que chama a atenção no caso da Guerra do Vietnã foi a imprensa totalmente parcial e os atores que se diziam pacifistas, como por exemplo a Jane Fonda, que acabaram por inspirar o lado inimigo a resistir; Hanson analisa que era a primeira vez na história bélica ocidental que havia pessoas ao lado dos inimigos de guerra.
Outro aspecto que merece destaque é a mitologia acerca da guerra que foi amplamente divulgada pela imprensa sobre a disseminação do uso de drogas entre os combatentes e a intensidade do stresse pós-traumático sofridos pelos soldados americanos.
Hanson demonstra com fatos e dados que, na média, os veteranos se adaptaram muito bem na reintegração à sociedade, apesar da dureza dos combates, já que o tipo de ataque vindos dos comunistas era sorrateiro e as condições de guerra, horrorosas.
A imprensa divulgava apenas o que era mais sensacionalista tanto que o jornalista francês Jean Lacouture admitiu que foi a ideologia, não a verdade, que orientou grande parte das reportagens sobre a guerra.
Enfim, a Guerra do Vietnã foi um conflito em que esteve presente o medo dos políticos diante da pressão popular; a manipulação da imprensa e a incompetência do alto comando militar norte-americano. No entanto, apesar disso tudo, ainda é possível vislumbrar todos os aspectos positivos da tradição ocidental, principalmente na disciplina que produz excelentes soldados.
O livro é encerrado com um epílogo que reforça o legado greco-romano na formação das instituições ocidentais que tornaram esse modo de guerrear mortífero. O autor ainda faz uma rápida reflexão sobre o futuro desse legado ocidental, analisando que a guerra pode ser fatal quando um ocidental enfrenta outro. Para completar, uma sugestão de leitura complementar para cada capítulo e um glossário que ajuda o leitor a compreender todos os pontos analisados no livro. Por todas essas reflexões, a obra é, com certeza, uma referência obrigatória para os que querem compreender a estrutura da geopolítica atual.
Em tempos em que a imprensa não possui diversidade de análise e há um comprometimento com agendas esquerdistas, análises com a profundidade demonstrada por Victor Hanson são uma luz real no fim do túnel.