sábado, 17 de setembro de 2011

Filme BIGELOW, Kathryn GUERRA AO TERROR

Guerra ao Terror (The Hurt Locker, EUA, 2008).
De: Kathryn Bigelow.
Com: Jeremy Renner, Anthony Mackie, Brian Geraghty, Guy Pearce, Ralph Fiennes, David Morse, Evangeline Lily.


Certas coisas são impossíveis de replicar. Assim como no universo criado por Ridley Scott no lendário Blade Runner, a diferença entre o verdadeiro e o artificial é sutil, quase imperceptível a olhos destreinados. Nas mãos da pessoa certa, é até plausível dizer que o sentimento é o mesmo. Mas, como no final tudo é um espetáculo, a cortina fecha e lá estamos nós. Abalados, impressionados, quem sabe até devastados pelo que acabou de passar por nossos olhos. O mesmíssimo desespero transparecendo no olhar. Mas estamos seguros, confortáveis, teremos tempo para pensar, para se recuperar, e simplesmente seguiremos em frente. É cruel, é quase aflitivo em alguns momentos, mas é a verdade e esconder-se dela é inútil. Se há algo que Guerra ao Terror passa com eficiência ímpar é essa sensação desoladora de saber... mas não poder agir. Afinal, se estamos aqui, deste lado da tela, por mais que quisermos salvar vidas do outro lado do oceano e descobrir o que realmente está acontecendo, não está ao nosso alcance. Não podemos estender a mão, suportar o peso de uma arma ou desarmar uma bomba colocando a própria vida em perigo em nome de pessoas que não conhecemos, e pior, nas quais não confiamos. Guerra ao Terror deixa claro desde o início o que quer provar. Em uma citação que surge na tela sem explicações, uma frase permanece por mais tempo: a guerra é uma droga. E nós, seres humanos, somos potenciais viciados. Todos nós. É difícil explicar a sensação, mas assistir a Guerra ao Terror é como ter uma dose baixa, inofensiva quase, dessa droga. Quando você menos esperar, vai estar hipnotizado, querendo mais. Sobem os créditos, e é quase como se uma viagem tivesse acabado antes do momento certo. Não há um final de verdade em Guerra ao Terror, porque a guerra ainda não acabou, e, provavelmente, nunca irá acabar. Ficar ao lado de soldados tão dedicados e tão diferentes por breves duas horas é como ver crescer um sentimento ambíguo que, por breves momentos, é verdadeiro. Poderoso, até, a ponto de fazer subir aquele arrepio pela espinha e a ponto de fazer a câmera se tornar nossos próprios olhos, observando algo que odiamos, que causa repulsão. Mas, ainda assim, algo que parece natural. Horrivelmente prazeroso. A pergunta que fica: por quê? Não importa. Não para as vidas que se perdem na batalha, pelo menos.

William James (Jeremy Renner) é um sobrevivente e ao mesmo tempo alguém que receberia a morte com um sorriso. Um soldado que viveu mais na guerra do que fora dela e alguém que não esconde o quanto sua vida faz mais sentido com a adrenalina correndo por suas veias. Um homem que não teme a morte porque sabe que a vida depois de sobreviver a ela pode não valer a pena. Um personagem complexo que aos poucos desenvolve uma identificação imprevisível, explosiva e intrincada com o espectador conforme os dias em campo vão passando e a ligação entre ele e seus comandados vai se estreitando. Ele se torna o novo sargento de uma divisão responsável por desarmar bombas no calor da batalha quando Matt Thompson (Guy Pearce) sucumbe a uma das armadilhas terroristas espalhadas pela cidade. É claro, a guerra não pode parar e James assume a liderança do time formado pelo cauteloso JT Sanborn (Anthony Mackie) e pelo jovem Owen Eldridge (Brian Geraghty). O primeiro, uma pilha de nervos a flor da pele e um soldado que não gosta de sair dos planos porque preza demais por sua vida. De certa forma, o antagonista perfeito para o jogo de gato e rato que James impõe no combate urbano tenso em pleno Iraque. O segundo, um jovem perturbado pelo horror da guerra que vê na serenidade nervosa de James um exemplo para se mirar e tenta ser como ele porque quer esquecer quantas vidas pesam no julgamento de sua arma. A balança imprevisível de emoções e temperamentos é gerenciada com precisão cirúrgica e magistral habilidade pelo roteiro de Mark Boal (No Vale das Sombras), uma revelação de puro realismo e um deleite de envolvimento para os apreciadores do bom cinema. De forma mais objetiva, porém, a verdadeira força do roteiro vem do assustador clima de pressão emocional e psicológica ao qual o espectador é submetido a cada nova missão e, no clímax, mesmo nos diálogos mais banais. As situações extremas criadas pelo roteirista conduzem com habilidade ímpar os personagens por um labirinto de maus julgamentos e ventos amargos que levam a um destino ruim. Ou pelo menos assim parece durante todos os 131 minutos de Guerra ao Terror, um filme que destrói de uma vez por todas qualquer esperança de que um dia a paz possa reinar. Porque a guerra é milhares de vezes mais poderosa do que qualquer outra droga.

Apesar do trabalho primordial fantástico de Boal no roteiro, Guerra ao Terror jamais causaria o impacto que pretende se não fosse o trio de protagonistas. Jeremy Renner, mais conhecido por papéis coadjuvantes em filmes como Extermínio 2 e Terra Fria, encara seu primeiro protagonista e faz um trabalho não menos que perfeito ao dar vida ao furacão de violência e contradição que é William James. Na pele do sargento, Renner entrega a interpretação intensa que o personagem exige e ainda vai além, compondo um cru, cruel e desoladoramente realista mensageiro da morte, que chega como uma força sobrenatural e humana a um tempo para balançar o mundo já abalado de soldados que não sabem até que ponto vale a pena lutar pela sobrevivência. Detalhista, visceral ou simplesmente eficiente para o que se propõe, Renner passeia pelo roteiro com a desenvoltura de um gigante em cena. Ao lado dele, Anthony Mackie (Menina de Ouro) é o soldado honrado e a ligação emocional mais forte do espectador com a platéia, compondo uma atuação menos intensa que a de Renner, e ainda assim tão eficiente quanto. É a prova definitiva de que interpretar é mais instinto e menos fórmula, uma explosão de criatividade em tela e uma incorporação perfeita de um personagem que parece mais simples do que verdadeiramente é. Complexidade essa que é entrelaçada de forma quase instintiva com a atuação de Brian Geraghty (Soldado Anônimo), um furacão de incerteza que passa pela tela arrasando tudo a seu caminho e termina a projeção como o elo fraco de uma corrente que se partiu. O resultado: seu Owen Eldridge é o mais real, impressionante e inesquecível elemento de Guerra ao Terror. Se o elenco faz o trabalho pesado ao trazer intensidade e técnica a uma história de puro instinto, Kathryn Bigelow (Caçadores de Emoção) cuida de nos mostrar, com sua câmera trêmula e invasiva, o quanto o cotidiano de uma guerra pode ser perturbador. Intrusiva, carregada de instinto e talento incontestável, a direção da cineasta se adequa tão puramente com a trama que fica difícil imaginar outras imagens traduzindo os mesmos sentimentos. Ela não foge do impacto visual e, jogando nesse campo, constrói algumas das cenas mais impressionantes dos últimos tempos, mostra-se eficiente em provocar tensão e não escorrega nos momentos de adrenalina, chegando ilesa ao final dos 131 minutos de projeção de Guerra ao Terror e criando uma identidade visual única para um filme em que tudo parece convergir para um resultado de brilhantismo e perturbação irrevogáveis. O mais impressionante? Pode estar acontecendo, de verdade, a um oceano de distância.

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