sábado, 21 de janeiro de 2012

LIVRO - PORQUE O OCIDENTE VENCEU

DAVIS, Victor Hanson. Porque o Ocidente Venceu - Massacre e Cultura - Da Grécia ao Vietnã. Ediouro, 2011.

A história da guerra não é a história da moralidade, nos previne Victor Hanson Davis em seu livro Porque o Ocidente Venceu, da Editora Ediouro, 703 páginas. E é sob essa perspectiva que Hanson (também colunista neste site http://www.midiaamais.com.br/victor-davis-hanson) analisa os motivos que levaram o Ocidente a superar outros exércitos numericamente superiores ao longo da história. E, através dessa análise, destaca os grandes valores ocidentais que, ao lado da tecnologia e de armas superiores, fizeram da cultura ocidental uma cultura muito superior a de seus inimigos, tanto na guerra, como na paz.
Victor Hanson escreveu mais que uma simples análise das estratégias militares e de recursos bélicos do Ocidente, ele conseguiu analisar a estrutura que tornou o desenvolvimento do Ocidente em um diferencial. Ou seja, em cada uma das batalhas analisadas, demonstra como o governo, a economia de mercado, a estrutura política, o desenvolvimento tecnológico, a ideia de liberdade tiveram sérias consequências na defesa do individualismo, no desenvolvimento tecnológico e para a história ocidental.
Dessa forma, no livro são analisadas nove grandes batalhas, divididas em três partes:
Criação - abrange as batalhas da antiguidade clássica, como Salamina, em que gregos guerrearam contra os persas (480 a.C); Gaugamela, onde os macedônios conquistaram os persas (331 a.C) e Cana, em que os romanos lutaram contra os cartagineses (216 a.C).
Continuidade - analisa as batalhas de Poitiers, em que os francos lutaram contra os árabes, impedindo o avanço pela Europa (732); Tenotchitlán, que foi decisiva para a conquista dos espanhóis sobre os astecas (1521) e Lepanto, em que uma liga cristão luta contra os turcos otomanos (1571).
Controle - disseca as batalhas do período contemporâneo, como Rorke’s Drifit, entre ingleses e zulus (1879), Midway entre americanos e japoneses na Segunda Guerra(1942) e a Ofensiva Tet, entre americanos e vietnamitas (1968).
Na primeira parte, Criação, é demonstrado como os conceitos de individualismo e liberdade amplamente difundidos na Grécia Antiga fizeram diferença para os hoplitas que defenderam sua pátria contra um exército de escravos. Hanson tem a percepção que falta a muitos historiadores ao perceber que, além da disciplina, os soldados gregos tinham em si a busca pela liberdade. Não essa liberdade que muitas vezes é usada apenas como discurso ideológico, mas a liberdade prática, que evitaria que suas mulheres e seus filhos se tornasse escravos para o Império Persa.
Dessa maneira, é em cima da ânsia pela eleutheria (liberdade), pelos valores políticos caros ao cidadão grego que o genial Temístocles elabora sua estratégia naquela que seria uma das mais sangrentas e fascinantes batalhas navais de todos os tempos: a de Salamina, entre gregos e persas.
A guerra para os gregos tem valor político e cultural, além da questão militar. Para os persas, não há motivação e sim coerção intensa dos generais, além da carga tributária. Nesse aspecto há um traço comum entre persas, otomanos e astecas: eles são uma imensa sociedade dividida em milhões de habitantes, governados por autocratas e coagidos por generais.
Em Salamina ou em Midway, centenas de séculos depois, a luta pela manutenção cultural, pelos valores cultivados, possuem um individualismo que torna-se uma máquina de guerra conjunta.
No caso da batalha que tingiu de vermelho o mar dos Estreitos de Salamina, tão bem narrado por Heródoto, a base racional e humanista permitia aos líderes ouvir seus oficiais. Esse diálogo, também está presente na conquista espanhola. No lado oponente, fosse ele persa, asteca ou japonês do século XX, dificilmente haveria essa liberdade de ação.
A batalha naval liderada por Temístocles não foi a única para libertar os gregos da ânsia de dominação dos persas. Mas, foi a decisiva. Não teria sido possível a vitória em Mícale, sem Salamina e Plateia. Foi a estratégia grega, aliada aos valores descritos que venceram o imenso e, numericamente, superior exército persa. Ou seja, Salamina é a prova de que povos livres lutam melhor que os escravizados, ainda que essa escravidão seja intelectual.
Dessa forma, a herança grega foi definitiva para que Alexandre pudesse conquistar os persas na Batalha de Gaugamela em 331a.C. Hanson destaca que, apesar de posteriormente o imperador macedônio ter se orientalizado, seu estilo de batalha e comando eram tipicamente ocidentais e dentro da organização bélica ocidental, a liberdade de pensamento e ação era permitida e incentivada, gerando sempre inovações no campo de batalha que surpreendiam o inimigo. E, tal como acontecia com o exército grego, os homens de Alexandre queriam a batalha, não eram meros escravos, opinavam sobre o que estava acontecendo. A tal ponto de Alexandre discordar de seus generais e ouvir seus soldados, andando por entre as tropas nas vésperas de batalhas.
Mais uma vez, o profissionalismo do exército liderado por Alexandre e suas questões táticas fizeram do modo helênico de lutar, uma verdadeira máquina de guerra. Sem dúvida que o pai de Alexandre, Felipe II, fez algumas alterações na falange grega, dando nova importância a ela e tornando-a imbatível. É destacado no livro que Felipe II trouxera para a guerra ocidental uma noção mais sofisticada de guerra decisiva. E Alexandre aperfeiçoou esse legado para conquistar os persas.
Um aspecto interessante, é que Alexandre, após suas conquistas acabou se orientalizando muito e tornou-se um déspota com tendências teocráticas que não foram positivas para seu império após a sua morte, facilitando a fragmentação do território. Mesmo assim, seus avanços em termos militares é de extrema importância para o Ocidente.
Hanson ainda faz mais uma análise acerca da “criação” da máquina de guerra ocidental: a Batalha de Canas, em 216 a.C. Detalhe: nessa batalha não foram os ocidentais os vencedores. Então, por quê analisar justamente, dentro do episódio das Guerras Púnicas , uma das derrotas mais traumatizantes que já foi registrada na história ocidental?
Justamente por causa dos fatos seguintes, que levariam Roma à sua vitória final 70 anos depois.
Ao analisar as causas da derrota, Hanson evidencia que, naquela batalha especificamente, os romanos tinha sério problemas com a idade dos soldados e o comando não estava consolidado, gerando problemas estratégicos, mesmo o exército numeroso e possuidor de melhores armas. A narrativa é de Políbio e chega a ser chocante a forma como ele descreve os jovens soldados que nem chegaram a ser enterrados e tiveram seus corpos putrefando durante vários meses.
Ao ressaltar esse dado terrível de uma derrota, o autor destaca que: “A pior derrota em um único dia na história de qualquer força militar não alterou em nada o desfecho final da guerra. A simples estupidez simbolizada por generais incompetentes e táticas ruins neutralizara a vantagem intrínseca dos exércitos ocidentais. (...) No final, isso tudo fez bem pouca diferença”.
Ou seja, a maior lição de Canas é que não foi apenas o propalado gênio tático do general cartaginês Aníbal que fez toda a diferença. Foi também o exército inexperiente e mal conduzido dos romanos. No entanto, diante do massacre de Canas, a sociedade romana se mobilizou e estimulou mais cidadãos a irem para a batalha; ou seja, mesmo com tantos mortos, o exército se renovou.
Dessa forma, outra característica fica bem evidente no modo de guerrear do Ocidente: uma batalha perdida é realmente apenas uma batalha. A guerra é muito mais ampla. Tanto que é possível perceber isso nas análises subsequentes.
Na parte que é chamada de continuidade, Hanson assim justifica a escolha do nome através de batalhas que vão desde o alto medievo (Batalha de Poitiers - 732) e duas da época moderna, pois nas três há aspectos que evidenciam a noção de civilidade dentro da guerra herdados da Roma Antiga.
Dessa forma, a Batalha de Poitiers de 732, também conhecida por Batalha de Tours, é extremamente importante, não apenas pela questão de ter impedido o avanço dos árabes muçulmanos para dentro do continente europeu, como também representou a manutenção de muitos valores ocidentais que seriam difundidos por toda a Europa da época. É consenso entre os historiadores que a Europa tem sua gênese muito fincada no medievo.
E, analisando por esse aspecto, quando Carlos Martel se apropria do jeito romano de lutar e chama para a batalha homens livres, é a continuidade dos valores ocidentais colocados em evidência.
É claro que o exército de Carlos Martel não era tão disciplinado, nem tão grande quanto um exército consular romano, mas a maneira como seus lanceiros e espadachins pesadamente armados foram recrutados, mostrava bem essa relação com o passado.
Dessa forma, quando os europeus, durante a expansão marítimo comercial, chegaram ao território americano, não havia um outro objetivo a ser atingido a não ser vencer. Isso fica muito claro na conquista da cidade asteca de Tenotchitlán.
Tal como Poitiers, a conquista dos astecas está ligada ao processo de continuidade da estratégica bélica ocidental. Dessa maneira, Hanson analisa esse episódio sob a ótica da superioridade tecnológica e do sentido da guerra para o ocidente. Ou seja, as condições para os espanhóis eram muito mais complicadas que o senso comum costuma supor. Tanto que os homens de Cortés ficaram sitiados de 24 a 30 de junho de 1520, em uma das situações mais tensas enfrentadas pelos espanhóis na América. Muitos homens foram abatidos nesse período. Outros tantos foram executados (sacrificados) e muitos morreram em decorrência de doenças tropicais.
O que fez toda a diferença foi o conceito de guerra. Hanson nos chama a atenção para a grande diferença que existia entre a guerra teatral dos astecas e a guerra para vencer dos espanhóis. Os astecas não faziam armas para eliminar o exército inimigo; não se tinha a noção de ser perder uma batalha e voltar para o combate posteriormente. Dessa maneira, quando os espanhóis não só voltam para a batalha, como fazem um certo estratégico e ainda se aliam aos inimigos dos astecas (povo que dominava e sacrificava seus vizinhos), a reação foi dispersa e ineficaz. Cortés sofreu todo tipo de resistência, mas as superou se utilizando da tecnologia e estratégia tipicamente ocidentais.
Na última parte, intitulada Controle, a análise parte da batalha de Rorke’s Drifit, em 1879, entre zulus e britânicos, na África. Essa batalha foi precedida por uma episódio muito parecido com La Noche Triste em que os espanhóis foram quase vencidos pelos astecas. No caso dos britânicos, o massacre de Isandhlwana, em que houve uma desastrosa derrota, apesar de todas as condições para que a vitória fosse a consequência natural. E, tal como aconteceu em Canas ou com os espanhóis na conquista dos astecas, após uma derrota aviltante, segue-se uma vitória exemplar. No caso de Rorke’s Drifit, havia um número muito reduzido de homens britânicos em relação aos guerreiros zulus e eram muito maiores as chances de uma carnificina.
É desse aspecto que se tiram algumas conclusões, como a de que guerreiros não são soldados. Ou seja, é preciso muito mais que coragem para que uma batalha seja vencida, é necessário disciplina e ordem. Como os soldados britânicos demonstraram ao organizar o acampamento de tal forma que conseguiram, durante uma noite toda, conter os avanços dos zulus. Tal como em Tenotchitlan, o conhecimento tecnológico fez diferença, inclusive na questão da defesa e do ataque, usando sacos para construir um muro de proteção. Ou seja, estratégia e tática perfeitas. Os zulus não conseguiram resistir à forma ocidental de guerrear.
Algumas considerações valem a pena sobre todo esse contexto: não adianta os povos rivais terem a mesma tecnologia dos Ocidentais. A combinação de ideologia, tática, estratégia e tecnologia é que fizeram a diferença. E, acima de tudo, liberdade. Isso fica bem evidente na mais terrível batalha já travado em mar aberto: a de Midway, entre Estados Unidos e Japão, em 1942.
O Japão havia se ocidentalizado em muitos aspectos, mas não me suas instituições políticas. A guerra nos moldes ocidentais baseia-se nos valores sociais e políticos que vão além da posse tecnológica de armas. É preciso que exista a livre investigação, método científico e produção de conhecimento. Ou seja, o Japão nunca teve uma visão política que estimulasse o individualismo.
Em uma batalha tensa, equilibrada, a ação individual faz toda a diferença. E em Midway fez muita diferença. Um outro aspecto foi o fato de que, a inegável vantagem de todos os porta-aviões japoneses carregarem torpedos ao invés de bombas foi neutralizada pela confusão neutralizada nos conveses de decolagem.
Isso evidencia que batalhas raramente levam boas políticas em consideração. O ritmo é muito mais rápido, o que exige uma adaptação imediata e a ortodoxia nipônica pôs tudo isso a perder.
Conclusão: havia uma rígida hierarquia e uma submissão completa do indivíduo ao imperador japonês. Mais um caso em que a cultura ocidental fez toda a diferença.
A última batalha a ser analisada é a encarnação do conceito de paradoxo: a Ofensiva do Tet, durante a Guerra do Vietnã. Hanson se utiliza dessa batalha para analisar todas as questões envolvidas na guerra do Vietnã, principalmente o papel do sensacionalismo da imprensa que acabou por causar comoção nacional e, dessa forma, ser decisiva na retirada das tropas americanas da guerra.
Hanson avalia o poder de fogo americano e a forma confusa utilizada pelos vietnamitas para atacar a embaixada americana em Saigon e como isso foi divulgado pela imprensa como algo negativo, ignorando que a estratégia comunista matou milhares de inocentes.
É possível observar nessa última análise o quanto a imprensa foi manipuladora em suas imagens, nas entrevistas e como o efeito foi devastador para a opinião pública americana que alternava entre a compaixão com os vietnamitas do norte mortos e a condolência sentida pelos soldados americanos que morreram. Claro que esses aspectos não levam nenhum exército à derrota, mas assustam governos sob a pressão das eleições.
O autor compara essas situações às enfrentadas pelos atenienses durante a Guerra do Peloponeso e, através dessa argumentação, demonstra como os ocidentais pagam o preço pela liberdade de se dizer o que se quer. Justamente por isso é que o capítulo sobre o Vietnã é iniciado com a crítica de Tucídides à inconstância ateniense e à falta de apoio à expedição que atacaria a Sicília. O ensinamento de Tucídides vale para o que se vê ainda hoje, pois o historiador grego acreditava que “os siracusanos haviam se revelado guerreiros tão bons contra Atenas porque eram uma sociedade livre e democrática igual aos atenienses. Ele concluiu que as sociedades livres são as mais resistentes na guerra.”.
Um detalhe que chama a atenção no caso da Guerra do Vietnã foi a imprensa totalmente parcial e os atores que se diziam pacifistas, como por exemplo a Jane Fonda, que acabaram por inspirar o lado inimigo a resistir; Hanson analisa que era a primeira vez na história bélica ocidental que havia pessoas ao lado dos inimigos de guerra.
Outro aspecto que merece destaque é a mitologia acerca da guerra que foi amplamente divulgada pela imprensa sobre a disseminação do uso de drogas entre os combatentes e a intensidade do stresse pós-traumático sofridos pelos soldados americanos.
Hanson demonstra com fatos e dados que, na média, os veteranos se adaptaram muito bem na reintegração à sociedade, apesar da dureza dos combates, já que o tipo de ataque vindos dos comunistas era sorrateiro e as condições de guerra, horrorosas.
A imprensa divulgava apenas o que era mais sensacionalista tanto que o jornalista francês Jean Lacouture admitiu que foi a ideologia, não a verdade, que orientou grande parte das reportagens sobre a guerra.
Enfim, a Guerra do Vietnã foi um conflito em que esteve presente o medo dos políticos diante da pressão popular; a manipulação da imprensa e a incompetência do alto comando militar norte-americano. No entanto, apesar disso tudo, ainda é possível vislumbrar todos os aspectos positivos da tradição ocidental, principalmente na disciplina que produz excelentes soldados.
O livro é encerrado com um epílogo que reforça o legado greco-romano na formação das instituições ocidentais que tornaram esse modo de guerrear mortífero. O autor ainda faz uma rápida reflexão sobre o futuro desse legado ocidental, analisando que a guerra pode ser fatal quando um ocidental enfrenta outro. Para completar, uma sugestão de leitura complementar para cada capítulo e um glossário que ajuda o leitor a compreender todos os pontos analisados no livro. Por todas essas reflexões, a obra é, com certeza, uma referência obrigatória para os que querem compreender a estrutura da geopolítica atual.
Em tempos em que a imprensa não possui diversidade de análise e há um comprometimento com agendas esquerdistas, análises com a profundidade demonstrada por Victor Hanson são uma luz real no fim do túnel.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

FILME TUDO PELO PODER

No filme "Tudo pelo poder" alguém diz que o único pecado imperdoável num político americano é o pecado da carne — mesmo na forma branda de rapidinhas com estagiárias predispostas. Um dos pré-candidatos republicanos às eleições presidenciais deste ano nos Estados Unidos já foi obrigado a desistir depois que se revelou que ele era um predador sexual.
Muitos homens públicos americanos tiveram que se submeter a um ritual de contrição pelos seus pecados — geralmente com a esposa estoicamente ao seu lado, diante dos repórteres e das câmeras — antes de renunciar ao cargo ou à candidatura.
O que nos leva a pensar no contraste com o Brasil, onde a vida sexual de cada um é raramente um fator na disputa política. Nossos escândalos são assexuados, a vida privada permanece privada mesmo em meio ao maior tiroteio. E há quem diga que alegações sobre infidelidade matrimonial, voracidade sexual, etc. só aumentariam a popularidade de um político brasileiro. Mas não sejamos cínicos.
O filme "Tudo pelo poder" é bom. George Clooney é um candidato a candidato à presidência em campanha numa primária estadual. É um democrata idealizado, com opiniões que o próprio Clooney gostaria de ouvir de um candidato real — ou seja, o que ele esperava que o Obama fosse, e não foi. Seu opositor na primária mal aparece no filme, não tem nenhuma importância no enredo. O conflito acontece dentro da sua equipe, onde, com uma exceção, todos os personagens principais se revelam, de uma forma ou de outra, carentes, digamos, de caráter.
E aí é que está um dos poucos defeitos do filme: o único personagem que se salva, que tem um comportamento ético e que acaba pagando por ser a exceção é interpretado por Philip Seymour Hoffman, que ninguém nunca viu fazer papel de herói moral.
Além do pouco convincente Hoffman, Clooney, que coescreveu e dirigiu o filme, não livra a moral de ninguém, nem do seu candidato ideal. Fez um filme pessimista sobre a falibilidade humana, mesmo dos melhores humanos. O título em inglês, "Os idos de março", evoca o "Júlio Cesar", de Shakespeare, mas no filme ninguém esfaqueia ninguém à traição. As traições são mais sutis.

FILME CAVALO DE GUERRA Steven Spielberg

SENTIMENTALISMO RELINCHANTE

Todo mundo conhece (a coisa começou em 1930, mais ou menos) aquele personagem meio idiotado, amigo do herói do filme, que desde a primeira cena já está marcado para morrer.
Ele ri bastante, é ingênuo, é feliz e não fará falta nenhuma para o desenvolvimento da trama. Anuncia algum sonho banal para o futuro: "Quando eu voltar da guerra, quero cuidar do meu posto de gasolina"; "quando sairmos desta maldita ilha, vou me dedicar ao plantio de alfaces".
Seu sonho morrerá com ele na primeira carga da cavalaria inimiga ou no segundo ataque de tubarões voadores. Não quero contar muito de "Cavalo de Guerra", o mais recente filme de Spielberg, mas, se estiver contando, acho que não estrago a surpresa de ninguém. A razão é que não há surpresas nesse filme.
Ou melhor, há sim. É que, além do amigo idiotado do herói, Spielberg introduziu uma inovação bizarra nessa história de um cavalo atravessando os campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.
Ele criou o amigo do cavalo. Que é outro cavalo, evidentemente -e ganha um doce quem adivinhar quais as suas chances de sobrevivência até o final do filme.
Seria uma perfeita paródia dos clichês hollywoodianos, se a intenção de comover não fosse tão explícita. A música é um clichê do começo ao fim, e o fim é um clichê à parte, com vermelhidões de crepúsculo, no modelo de "...E o Vento Levou": um céu de "technicolor" contra o qual se recortam as silhuetas dos heróis da história, cavalo inclusive. Faltou um relincho de triunfo, para deixar a plateia definitivamente de quatro.
"Cavalo de Guerra" constitui, além do mais, uma verdadeira aberração moral. Verdade que os massacres de 1914-1918 já se perderam um bocado no tempo.
Mas contar sentimentalmente as desventuras de um cavalo nas trincheiras, enquanto seres humanos morriam como moscas, seria o equivalente a um filme que mostrasse a comovente sobrevivência de um hamster num campo de extermínio nazista. Tento matizar, em todo caso, esse julgamento. Nos depoimentos de antigos soldados da Primeira Guerra, fala-se de muita compaixão pela sorte dos animais.
Cavalos foram ainda muito importantes naquele conflito: transportavam alimentos e munição para as tropas. Era frequente entrarem em pânico no meio das bombas e que agonizassem, mutilados, ao lado das vítimas humanas.
A piedade dos soldados se justifica, acho, pelo fato de que os animais nem mesmo sabiam o que estava acontecendo; e não tinham escolhido, é claro, integrar os batalhões de combatentes.
Dessa dupla inocência não participavam os soldados, por mais iludidos que estivessem ao se alistar.
Haveria sentido, então, no tema do filme. Não seria propriamente um clichê, embora o recurso já tenha sido utilizado muitas vezes (desde Swift, por exemplo): mostra-se a "humanidade" de um cavalo em meio a uma guerra humana e, por isso mesmo, bestial.
O foco de "Cavalo de Guerra" não seria, por si só, escandaloso e ilegítimo. Mas a sentimentalidade cavalar de Spielberg, se não for simples exemplo de que o diretor está gagá, exigiria outra explicação.
Claro, Spielberg muitas vezes foi sentimental, apelativo, o que quisermos. Mas não era, hum, burro; e não estou entre seus inimigos jurados.
Em "Cavalo de Guerra", talvez exista um argumento oculto capaz, não de salvar, mas de explicar o seu desastre estético e moral.
A tragédia de 1914-1918 marcou a passagem de um modelo de guerra ainda galante, de cavalarianos com a espada em punho, para um conflito principalmente tecnológico, baseado em tanques, aviões e armas químicas.
O verdadeiro antagonista do cavalo, no filme, é o canhão, a metralhadora, o tanque de guerra.
Esse domínio "desumanizador" da tecnologia é também o que se vê na própria indústria cinematográfica, na qual o que conta são os efeitos digitais e o virtuosismo milimétrico das tomadas.
Diante de um cinema tão perfeito tecnicamente, Spielberg talvez queira recuperar o "sentido humano" da história. Mas, no seu vocabulário, isso significa mais sentimentalismo. Que o sentimentalismo privilegie as emoções em torno de um cavalo é sintoma, sem dúvida, que da humanidade hollywoodiana não resta mais nada a esperar.